"LehmannEm entrevista à DW, o quadrinista franco-brasileiro Matthias Lehmann conta como foi a pesquisa para produzir "Chumbo", obra que aborda a ditadura militar brasileira por meio da história de uma família mineira.O Brasil sempre esteve no coração do francês Matthias Lehmann. E na língua – o português foi sua primeira língua. Filho de mãe brasileira e pai francês, ele cresceu ouvindo memórias do país e, quase todos os anos, visitando parentes em Minas Gerais.

Mais tarde, passou a querer entender a história brasileira – e, claro, os horrores da ditadura, inaugurada com o golpe que completa 60 anos, passou a fazer parte da sua consciência. Desde que se tornou ilustrador, quadrinista e pintor, planejava produzir algo sobre o assunto. "Eu sempre tive esse sentimento de que precisava fazer algo importante sobre o Brasil para, de certo modo, compensar o fato de não ter crescido no país", diz.

Em agosto do ano passado, ele lançou na França e originalmente em francês a HQ Chumbo, que conta a história de uma família mineira, ambientada no contexto da ditadura. Neste mês, o livro chega às livrarias brasileiras, em versão traduzida para o português. Lehmann conta que a obra "surpreendeu muitos leitores" franceses. "Aqui poucos sabem o que foi a ditadura, sua violência e sua extrema longevidade", comenta.

Consciente do atual momento mundial, em que ânimos políticos estão polarizados, ele entende o livro como parte de "um movimento geral de vigilância frente a esta onda reacionária" e pontua que a polarização no Brasil "se acentuou ainda mais durante a era Bolsonaro". "Na França, estamos a redescobrir tudo isto, depois de décadas de batalhas políticas relativamente respeitosas", ressalta.

Lehmann é sobrinho do escritor e jornalista brasileiro Roberto Drummond (1933-2002), autor de Hilda Furacão, entre outros livros.

DW: Em primeiro lugar, gostaria de saber um pouco sobre sua relação com o Brasil. Você sempre sentiu alguma identificação com o país?

Matthias Lehmann: Bom, minha mãe sendo brasileira, tomei consciência dessa herança de modo muito rápido. Além disso, meu pai, que é francês, morou no Brasil por um tempo antes de conhecê-la, então ele também falava português. Por isso, quando eu era pequeno [esta] foi minha primeira língua. Cheguei à escola francesa e falei em português com a professora, que não entendia nada. Depois aprendi… A gente visitava os familiares em BH [Belo Horizonte, capital de Minas Gerais] todos os anos. Foi muito importante para minha mãe. Ela tinha muita saudade, então queria transmitir esse sentimento de pertencimento ao Brasil para minhas irmãs e para mim.

Sua mãe era irmã do Roberto Drummond, é isso?

Minha mãe era mineira, era irmã do Roberto. Os meus pais se casaram no Brasil e vieram embora para a França. E ficaram. Acho que a minha mãe não gostava tanto da França porque sentia falta do Brasil e da família. E dos brasileiros. Com certeza os franceses não são tão aconchegantes, de modo geral… De certa forma, ela também transmitiu essa saudade para a gente.

Você viajava muito ao Brasil na infância?

Infelizmente, grande parte da minha família já faleceu, mas ainda tenho umas primas em BH que vejo quando vou lá e até quando elas viajam para a Europa. Na verdade, elas viajam mais do que eu! Quando era criança, ia todos os anos para BH, todo verão [europeu, ou seja, durante as férias escolares de julho e agosto], e, assim que fui crescendo, continuei indo regularmente. Também tentei conhecer outras partes do país além de Minas Gerais. Já faz quase cinco anos que não vou, por vários motivos. Mas, se tudo der certo, irei em maio para acompanhar o lançamento do Chumbo.

Falando sobre o livro, como foi o processo de pesquisa, principalmente para o pano de fundo histórico?

Lendo muita coisa. Principalmente ensaios históricos. Um livro sempre abre o caminho para outro livro e assim, em geral, a lista de leitura só vai crescendo e rapidamente se torna faraônica. Felizmente, digo entre aspas, não tive tempo de ler tudo e aí tive que fazer escolhas. É óbvio que você não pode colocar tudo em uma história de ficção. O objetivo era, acima de tudo, ter uma base histórica bastante sólida, mas obviamente não sou historiador. Vários trabalhos foram muito marcantes para mim nesse processo de pesquisa. [Li obras da historiadora] Heloisa Starling, [do jornalista] Elio Gaspari, [do também jornalista] Rubens Valente e [do escritor, cronista e jornalista] Humberto Werneck. E também documentos, tipo o relatório da Comissão Nacional da Verdade em Minas […]. Também pesquisei muitas coisas mais visuais, entre fotos, design gráfico, arquitetura… Isso foi bastante importante.

E por que escrever uma história tão brasileira?

Sempre convivi com essa dualidade França-Brasil em mim. Mas cresci na França, né? Eu sempre tive esse sentimento de que precisava fazer algo importante sobre o Brasil para, de certo modo, compensar o fato de não ter crescido no país. Quando eu era pequeno, a relação com o Brasil parecia natural, já que esse vínculo era através da família. Mas, com o tempo passando, meus tios e tias falecerem e eu senti que tinha que fazer o Brasil meu, através dos meus próprios meios. E a melhor maneira que conheço, para fazer as minhas coisas, é fazer quadrinhos.

A graphic novel foi lançada na França no ano passado. Como foi a recepção? De que maneira você acha que é importante para quem não é brasileiro também conhecer esse percurso histórico?

O livro foi muito bem recebido na França, até surpreendeu muitos leitores e leitoras que admitiram não conhecer bem a história do Brasil. Aqui poucos sabem o que foi a ditadura, sua violência e sua extrema longevidade. O pessoal associa mais ditadura com Chile ou Argentina… Afinal, foi [o ex-presidente] Jair Bolsonaro, com suas loucuras midiáticas, quem empurrou os franceses a se interessarem novamente pela política brasileira. [Mas] para a maioria das pessoas aqui, o Brasil continua sendo o país do futebol, do carnaval e das festas! Alguns dos meus leitores dizem [agora] compreender melhor o período Bolsonaro, à luz desse legado ideológico que foi a ditadura militar.

Na obra, você aborda o integralismo e, de forma central, a ditadura militar brasileira. Em tempos de ascensão de extremismos de direita, esta temática se torna mais necessária?

Em relação ao Brasil, eu queria muito falar sobre os mecanismos da ditadura e do golpe de Estado, e as repercussões de tudo isso no núcleo familiar. Esse fenômeno de polarização é muito forte no Brasil há muito tempo e se acentuou ainda mais durante a era Bolsonaro. Na França, estamos a redescobrir tudo isto, depois de décadas de batalhas políticas relativamente respeitosas entre os diferentes partidos, enquanto a extrema direita permanecia demonizada. Mas as coisas mudaram muito. Agora, a direita tradicional, inclusive o partido do [presidente francês Emmanuel] Macron, integrou ideias e parte do programa da extrema direta. Chumbo participa de um movimento geral de vigilância frente a esta onda reacionária. Mas, obviamente, é preciso que a sociedade civil reaja na sua globalidade diante desse fenômeno. A respeito disso, no momento, estou mais otimista com o Brasil do que com a França.

Os dois irmãos retratados em Chumbo, Severino e Ramires, seguem cada um para um lado da polarização ideológica: um milita na esquerda, outro defende os militares. De certa forma, é o retrato de muitas famílias brasileiras contemporâneas, divididas entre o bolsonarismo e o petismo. Você tinha essa consciência enquanto produzia a graphic novel?

Sim, claro, acompanhei de perto as notícias brasileiras durante o período em que estava escrevendo o livro, então isso com certeza me influenciou. De qualquer forma, existe uma certa continuidade histórica e é impossível explicar o período Bolsonaro sem levar em conta o golpe de Estado de 64 e as consequências da ditadura. Terminei de desenhar Chumbo alguns meses depois da posse do Lula e a tentativa de golpe do 8 de janeiro [de 2023] estava muito presente. Imagina!

O livro traz elementos muito importantes para a cultura brasileira, como o conjunto da Pampulha e referências a personagens como o escritor Fernando Sabino e a cantora Clara Nunes. Você também se orgulha desse Brasil cultural?

Sim. E também queria apresentá-lo aos leitores franceses. Espero que alguns aprofundem as suas pesquisas. Como em muitos países, no Brasil certas pessoas foram capazes do pior e outras do melhor e foi muito importante para mim ter referências literárias, históricas ou artísticas sólidas, para mostrar esse aspecto. [Lehmann enumera então alguns nomes que lhe são importantes, como os escritores Clarice Lispector e Mario de Andrade, a pintora Tarsila do Amaral, a arquiteta Lina Bo Bardi e os cantores Zé Keti e Nara Leão, entre outros]. Tantas e tantos… Foi importante para mim fazer essas referências [no livro]. Mas, antes de tudo, foi um prazer!