Se os dois últimos anos foram – e seguem – sendo um desafio global para todos, a humanidade pode ao menos contar com a poesia. Isso porque enquanto o poema é um texto literário composto de versos e estrofes, a poesia em si é algo maior: é uma manifestação artística que pode ou não estar baseada em palavras. Assim, a poesia é um conceito mais amplo e envolve pinturas, esculturas, literatura, dança, cinema e até séries de televisão. Em algum momento você, provavelmente, refugiou-se em algum deles em busca de tranquilidade, descanso e alguma alegria. A explosão dos saraus online, por exemplo, foi um fenômeno curioso causado pela pandemia. Quem tinha vergonha de declamar um poema em carne e osso ou estava distante geograficamente, começou a bater ponto no mundo virtual, nem que fosse apenas para assistir. Agora, com a vacinação avançada no País, os eventos se programam para a volta ao presencial.

Meu lugar é onde
Transpiro
Transbordo
Transfiro
Melina Guterres, criadora da Rede Sina

A jornalista e poeta Melina Guterres é uma especialista no assunto. Além de escrever, ela é a criadora e responsável pela plataforma cultural Rede Sina, que organiza saraus, exposições e a publicação de textos nas mais diversas modalidades. “Comecei a escrever aos sete anos, desde que minha mãe me deu um diário e não parei mais”, diz ao ser perguntada como tudo começou.

JUNTAS As irmãs Lívia e Natália vendem poemas personalizados para dar de presente ou decorar a casa (Crédito:Wanezza soares/ IstoÉ)

Atualmente Melina organiza eventos presenciais em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e também usa suas redes sociais para mostrar, não só o seu trabalho, mas também para transmitir outros saraus Brasil afora. A expectativa para seu primeiro evento fora das telas é grande, já que acontecerá no dia 30 de março com o objetivo de homenagear as mulheres. “É um desafio, mas estou feliz em poder voltar. Ver as pessoas pessoalmente, observar as subjetividades será gratificante”, explica. Por causa do público que conquistou fora do estado, o evento também será transmitido online, já que a procura tem sido enorme. Quem quiser assistir a esse ou aos eventos que acontecem semanalmente pela Rede Sina, basta procurar pela plataforma na internet. Melina explica que a atividade, presencial ou online, é única: “Sair do livro e ir para o espaço aberto é libertador, eu fiquei com vergonha na minha primeira vez, no Rio de Janeiro, mas nunca mais parei”.

Escrever para preencher
As linhas que sublinham
Meu corpo
Sublimam
Um poço
Escrever para encher
De palavras molhadas
O fundo
Lívia e Natália, criadoras do Manas Escritas

O sarau onde Melina começou a declamar seus primeiros versos é um dos mais tradicionais do País e tem boas curiosidades. Chamado de “Corujão da Poesia”, o sarau foi inspirado em vigílias de literatura realizadas em 1995 por ninguém menos que o músico Jorge Ben Jor. De forma institucionalizada e com o apoio de uma universidade particular, começou a funcionar em 2004, inicialmente em São Gonçalo e depois em Niterói e também na capital, Rio de Janeiro. Seu organizador, tão famoso quanto o próprio evento, é conhecido por todos como o “João do Corujão”. João Luíz de Souza é poeta e o assessor de cultura que faz tudo acontecer de maneira lúdica e divertida.

Especialista em literatura, fala com propriedade sobre diversos períodos da literatura brasileira, mas deixa claro que não precisa de “erudição” para começar. Sua energia é contagiante e faz até o mais tímido dos “futuros poetas” sentirem-se à vontade. “Todos são bem vindos”, diz ele sobre o “Corujão”, que viu um aumento de público “possível de ser mensurado”, principalmente por causa das atividades através do Zoom. “Pessoas de todos os estados apareceram e, não só isso, brasileiros em outros países, estrangeiros e pessoas de países lusófonos com Angola”, diz João. Contente com o apelo que os poemas ganharam em meio a tanto sofrimento, ele afirma que mesmo voltando com as atividades presenciais, o virtual veio para ficar.

Negócio sem ócio

“Não há a menor possibilidade de eu parar de fazer o online. Hoje participam pessoas da Espanha, Suíça, Portugal e essa interatividade é muito importante”, explica. Os eventos do “Corujão da Poesia”, como o próprio nome sugere, acontecem toda terça-feira de madrugada, começam às 22h e seguem noite adentro. Ele são gratuitos, aberto a todos e transmitidos também pela Rede Sina, de Melina Guterres. Já o primeiro evento presencial de João será no dia 24. “Vou fazer o Sarau da Casa, na Casa de Cultura em Maricá. A entrada é franca, microfone aberto e com doação de livros”, convida.

Além das atividades gratuitas, há quem faça dos versos um estilo de vida voltado ao lucro. Esse é o caso das irmãs Lívia Mota, de 35 anos, e Natália Moreti, de 31, que decidiram fazer poemas sob medida para as pessoas presentearem-se umas às outras. As duas, uma jornalista e atual estudante de Filosofia e a outra publicitária e estudante de Ciências Sociais, dedicam-se totalmente à vida poética. “Estamos fazendo uma segunda graduação para melhorar o nosso repertório e entendimento de mundo”, diz Lívia. Isso porque o projeto “Manas Escritas” criado por elas em Campinas, no estado de São Paulo, deu muito certo, mesmo sem nenhuma pretensão inicial.

“Em 2019 fomos convidadas para um evento cultural de uma amiga para fazermos algo envolvendo a escrita e pensamos em vender poesias rápidas em papel”, explica Natália. A ideia era conversar com as pessoas rapidamente e escrever um poema baseado na história contada. Com o isolamento, a ideia migrou para o online e ganhou maturidade. Hoje as irmãs atendem tanto através do site oficial quanto presencialmente na Livraria Pontes, em Campinas. O negócio funciona da seguinte maneira: quem quer adquirir um poema personalizado, entra em contato com as “Manas Escritas” e conta um pouco da história que quer ver transformada em poesia. “O processo de escuta é muito importante, saber ouvir o que a pessoa quer passar, entender aquele sentimento único”, diz Lívia. A construção do verso leva uma semana, o cliente faz ajustes se necessário, e depois o recebe impresso em papel especial em casa. Além de pessoas físicas, as irmãs também atendem empresas. Ou seja, o poema está no mercado corporativo.

ACOLHIDA “João do Corujão” é o nome por trás de um dos saraus mais populares do País. Para ele, todos são bem-vindos (Crédito:Chico Ferreira)

Outro simbolismo importante para os poemas aconteceu nos últimos anos. Em 2020, ano da eclosão da pandemia, o prêmio Nobel da Literatura foi para a obra da poetisa norte-americana Louise Glück. Boa parte dos seus poemas versa sobre o luto e a morte, tema que fez parte da vida de quase todas as pessoas do planeta naquele período. E por falar em livros, o clube de assinatura “Círculo de Poemas”, uma parceria das editoras Luna Parque e Fósforo, começou a funcionar em janeiro com lançamento apenas de poemas.

Os primeiros livros são resgates de grandes autoras, mas a edição de março trará uma obra inédita. “Nosso objetivo inicial foi reunir a obra de poetisas que estavam com suas obras espalhadas, sem um compilado que os colocassem juntos e trouxesse visibilidade às autoras”, explica o editor e poeta Leonardo Gandolfi, um dos responsáveis pela empreitada. Ler ou escrever, declamar ou ouvir, as opções nunca foram tantas.