O filólogo e helenista português Frederico Lourenço, de 55 anos, enfrenta uma jornada incomparável: estudar, traduzir e tornar compreensíveis em português textos clássicos da cultura ocidental. Depois de ter traduzido a “Ilíada” e a “Odisseia” de Homero e tragédias de Eurípedes no começo da década, ele assumiu o desafio de verter a Bíblia segundo fontes fidedignas. A epopeia tradutória é tão difícil que não tem data para terminar. Em 2017, ele iniciou pelo Novo Testamento, ao traduzir do grego os quatro Evangelhos. E acaba de lançar o segundo volume, com Apóstolos, Epístolas e o Apocalipse. São lançamentos da Companhia das Letras.

Para levar a cabo a tarefa, Lourenço guia-se pelo prisma da fidelidade histórica. “Procuro dar a ler, em português, um Novo Testamento que seja o mais próximo possível do texto grego”, diz à ISTOÉ. Para ele, não importa nem o valor literário nem o uso religioso do Novo Testamento, mas a materialidade real dos textos escritos no século I e transcritos desde então.

Epístolas falsas

Versões em português da Bíblia circulam desde o século XVI. Mas poucos se atreveram, como Lourenço, a enfrentar os documentos fundadores do cristianismo: os quatro códices canônicos que datam do século IV. Segundo o tradutor, essas coletâneas foram atestadas pela facção cristã que se afirmou como religião oficial de Roma no Concílio de Niceia em 325, sob a proteção do imperador Constantino. A ortodoxia eclesiástica fixou 27 textos tidos como legítimos do Novo Testamento — os quatro Evangelhos, as epístolas, os atos e o Apocalipse — e excluiu os restantes, por considerá-los heréticos. É o caso dos dois apocalipses de Pedro e os evangelhos de Maria Madalena e de Tiago. Pesquisas recentes comprovam que parte das Escrituras seguidas por milhões de cristãos ao longo dos séculos não pode ser considerada legítima. “Não sabemos quem escreveu 20 dos 27 livros canônicos”, diz Lourenço. Ao consultar esses códices, o estudioso questionou a autoria de várias epístolas e atos. Por exemplo, das 12 atribuídas a Paulo de Tarso (século II), somente sete são verdadeiras. Mesmo o Apocalipse pode ser questionado. Ele é atribuído a um certo João que não é nem o Batista nem o Evangelista, e data do século II.

“Pesquisas recentes comprovam que parte das Escrituras seguidas por milhões de cristãos ao longo dos séculos não é legítima”

Ainda que duvidoso, o Apocalipse pode ser considerado, de acordo com Lourenço, o tesouro literário mais precioso do Novo Testamento e inspirador de obras de arte desde a Idade Média. O texto profético em “grego excêntrico” e as “imagens caleidoscópicas”, como ele diz, oferecem tanto visões de um possível holocausto tecnológico como jogos de decifração, em linguagem simples. Ali, por exemplo, surge pela primeira vez a palavra “aleluia”. “É imaginação poética em ação”, afirma Lourenço. “O autor tem uma capacidade incrível de nos pôr imagens inesquecíveis diante dos olhos. De tudo o que já traduzi até agora da Bíblia, traduzir o livro de Apocalipse foi das coisas que me deu mais gosto.”

Assim, o leitor de língua portuguesa — literato, religioso, curioso, tudo ao mesmo tempo ou nenhuma das alternativas anteriores — pode se aproximar das fontes antigas, mesmo que calcadas em originais perdidos.

Uma saga de traduções

Entrevista
Frederico Lourenço

Divulgação

“É um texto que levanta mil questões”

Que problemas o senhor tem encontrado no trabalho de tradução do Novo Testamento?
Uma dificuldade foi acertar com a maior exatidão possível as palavras coincidentes nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. No caso dos textos de Paulo, há o próprio pensamento do apóstolo que é muitas vezes desafiante no raciocínio e na ligação entre as ideias.

Como sua tradução colabora para a compreensão do Novo Testamento em português?
Minha tradução tem o objetivo de trazer o texto grego do Novo Testamento mais próximo de todas as pessoas que não sabem grego. Procuro também, nas notas à tradução, dar conta de muitas dificuldades e curiosidades linguísticas que o texto grego suscita. Procuro também explicar as razões pelas quais a língua portuguesa não permite manter todas as nuances do texto grego. Estou convicto de que quem ler a minha tradução ficará a conhecer algumas das mil questões que o texto levanta.

O senhor tem trabalhado com textos clássicos, como “Ilíada”, “Odisseia” e o Novo Testamento. Quais seus planos de tradução de outras obras?
O meu objetivo principal é terminar a tradução da Bíblia. Às vezes pergunto-me se, depois disso, fará sentido traduzir qualquer outro livro!