Homem de confiança de Lula, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), sinaliza que, apesar do apoio do PT ao projeto vitorioso de reeleição de Arthur Lira à Presidência da Câmara, a nova gestão não planeja tê-lo como uma espécie de “primeiro-ministro”, como fez Jair Bolsonaro. “Nem o Planalto pode ser um puxadinho da Câmara, nem a Câmara pode ser um puxadinho do Planalto”, pontua. Responsável pelas negociações para arregimentar votos para o governo na Casa, o deputado reconhece que Lula larga sem uma base sólida no parlamento, mas minimiza o imbróglio. “Base não se constrói por decreto. Base se constitui com diálogo e gestos”, diz o parlamentar. Guimarães acrescenta ser o momento de o País se debruçar sobre temas econômicos, como a Reforma Tributária e a construção de uma nova âncora fiscal, e deixar de lado o embate ideológico. Ele afirma haver um “clima favorável” para virar a página do bolsonarismo, sobretudo em razão de dois episódios que chocaram o Brasil e a comunidade internacional no último mês: o atentado contra os Três Poderes e o genocídio dos yanom amis. “Bolsonaro foi um capítulo da história que envergonha todos nós”, completa, em entrevista a ISTOÉ.

No governo Bolsonaro, Arthur Lira exerceu basicamente o papel de primeiro-ministro. O deputado terá o mesmo poder na atual gestão?
A relação entre Câmara e Planalto precisa ser respeitosa, institucional e de compromisso com o país. Nada mais do que isso. Nem o Planalto pode ser um puxadinho da Câmara, nem a Câmara pode ser um puxadinho do Planalto. Tem que haver civilização e parceria. A experiência da eleição de Lula para cá tem sido positiva. Em todos os momentos, não faltaram gestos de colaboração de Lira. Ele foi o primeiro a reconhecer o resultado das urnas em um momento de estabilidade. Atuou como um colaborador importante na aprovação da PEC do Bolsa-Família e, agora, está sendo um interlocutor importante nas relações que estamos construindo para o governo ter uma base política e programática sólida na Câmara. Temos conversas de alto nível com Lira e é por isso que ele recebeu apoio tão amplo.

Chico Alencar, que concorreu ao cargo, disse que a reeleição de Lira resultaria no aumento da “capacidade de barganha e chantagem do Centrão”. A preocupação não é válida?
Essa era a lógica do governo anterior, não a de agora. A coisa está muito transparente e o orçamento secreto acabou. A relação umbilical entre Centrão e Planalto é página virada. A relação, agora, é institucional entre a Câmara e o governo.

O apoio a Lira abre o caminho para o diálogo com o Progressistas, apesar da relação de atritos entre Ciro Nogueira e Lula?
É uma questão para o futuro. Mas há diversos parlamentares do Progressistas que conversam conosco. Não podemos ter pressa. Base não se constrói por decreto. Base se constitui com diálogo e gestos. O tudo ou nada não pode ser a regra no parlamento.

Alguns partidos, ainda que agraciados com cargos no governo, não garantem votos a Lula. O União Brasil, por exemplo, tem metade da bancada pendente à oposição. Como lidar com a discrepância?
A posse dos deputados ocorreu nesta semana. Como pode-se dizer que o governo não terá os votos? Estamos em um processo de construção de uma nova base. Cremos que a oposição ferrenha a Lula partirá somente do bolsonarismo raiz. Todas as demais forças políticas estão abertas ao diálogo e à possibilidade de garantia de governabilidade.

A ausência de Bolsonaro do País, que deixa a oposição sem uma liderança, facilita a vida do governo?
Tanto faz. Bolsonaro é uma página a ser virada. O clima é favorável a isso. Ninguém se esquece dele por causa dos atentados de 8 de janeiro.

O ex-presidente tem responsabilidade sobre o Capitólio brasileiro?
Bolsonaro foi um capítulo da história que envergonha todos nós. As pessoas falam do dia 8, mas o atentado foi a conclusão de um processo de quatro anos. Quem não lembra das ameaças constantes que o ex-presidente fazia no cercadinho contra o STF e o Congresso. Aos poucos, construiu um ambiente para, ao não reconhecer o resultado das urnas, tentar um golpe fracassado e que só maculou ainda mais a imagem dos fascistas. O mundo ficou chocado. Foi pior que o Capitólio. Esse vandalismo vulgar da extrema direita não pode conviver com a democracia. Os poderes da República precisam ser mais exigentes e duros contra quem atenta contra a Constituição.

Lideranças petistas, antes entusiastas da CPI dos Atos Antidemocráticos, agora são contra. O que mudou?
Eu, desde o começo, fui contra. Por que? Os atos praticados precisam ser investigados pela Polícia Federal.

A CPI acirraria os ânimos em um momento de tentativa de pacificação?
Não podemos banalizar um instrumento importante de investigação como uma CPI. A comissão investigaria o que de diferente da PF? Está claro que quem praticou os fatos foram fascistas — estão sendo identificados, com base em filmagens e outras estratégias, e processados. Cadeia para eles. Há até parlamentares envolvidos às claras. CPI é para quando não há investigação por órgãos de controle. Temos um exemplo recente: a CPI da Covid. Por que, naquele momento, ela era necessária e fundamental? Porque a PGR não fazia nada enquanto as pessoas estavam morrendo e o Ministério da Saúde cometendo corrupção numa rede de irregularidades em torno da compra de vacinas.

O sr. mencionou parlamentares. Cabe ao Conselho de Ética a cassação do mandato de deputados que insuflaram atos golpistas?
Todos nós acabamos de tomar posse e ainda não sei se algum partido vai mover processos de cassação. O que digo é o seguinte: quem participou de forma direta ou indireta do dia 8 precisa ser punido, seja parlamentar ou não; seja militar ou não; seja empresário ou não.

Valdemar Costa Neto declarou que todo o entorno de Bolsonaro tinha minutas de decretos golpistas similares àquelas do Anderson Torres. É prova de que o ex-presidente realmente cogitou tentar reverter o resultado da eleição?
É temerário garantir. Que o bolsonarismo participou ativamente é certo. Mas as personalidades envolvidas só podem ser apontadas pela investigação.

Pulando para a Economia. A reforma tributária é um tema caro ao governo. Qual deve ser a PEC a andar primeiro — a da Câmara ou a do Senado?
O ministro Fernando Haddad tem reiterado que quer, ainda no primeiro semestre, enviar uma proposta de Reforma Tributária. Temos duas bases aqui dentro — a PEC 45 (Câmara) e a PEC 110 (Senado). Temos que pegar as duas e pensar em um texto que dê conta, por partes, da necessidade do País na questão de uma repactuação federativa, do consumo e da renda. O Brasil não tem como retomar o crescimento econômico com força, com geração de emprego e renda, sem a reforma. A orientação é que o andar de cima pague alguma coisa e não apenas o debaixo. Sou muito simpático à PEC 45, até mesmo porque a bancada do PT participou ativamente da discussão a partir de núcleos da Fundação Perseu Abramo. É um bom começo. Mas todos discutirão juntos. Digo que temos dois grandes desafios para este início de ano, além das medidas provisórias, como a do Bolsa-Família e a do Carf. Trata-se da reforma e da nova âncora fiscal para dar segurança jurídica ao País.

A nova âncora fiscal tem sido vista com desconfiança, sobretudo pelo mistério que o governo faz a dois meses da entrega do texto.
A discussão com a sociedade será ampla. Participarão empresários, trabalhadores e governadores. É um tema decisivo para o futuro do Brasil.

Mas não seria necessária mais transparência? O fato de a âncora não ser estabelecida por PEC já agita o mercado.
Em todas as economias mais desenvolvidas do mundo, a questão do gasto não é constitucionalizada. Eu prefiro uma regra clara e respeitada do que a colcha de retalhos de Bolsonaro. O ex-presidente furou o teto de gastos, que virou um dogma, em R$ 800 bilhões. Aquilo era uma marmota. Foi o maior desarranjo do País e com a chancela de Paulo Guedes, querido por muitos. Ninguém falou nada, como se fosse normal. Aí, quando aprovamos R$ 145 bilhões para o Bolsa-Família e investimentos, vem a chiadeira. Não pode ter teto de gastos só para inibir programas sociais. Precisa ser uma regra que valha para todos. Para o mercado, tudo. E para os pobres, nada? Precisamos de equilíbrio. É como Lula fala: “O pai de família não gasta mais do que ganha”. Mas ninguém pode conviver numa sociedade com essa quantidade de pobres. O país voltou ao Mapa da Fome. Isso não incomoda?

A crise dos yanomamis reforçou a pauta ambiental. Há no radar do parlamento a expectativa de endurecimento da lei para coibir o garimpo ilegal?
O Meio Ambiente é uma das prioridades do governo. Não é à toa que Lula colocou Marina como ministra. O mundo está olhando para o Brasil. Precisamos aperfeiçoar a legislação, reequipar órgãos de fiscalização, reduzir o desmatamento. O liberou geral dos últimos anos não pode persistir. O que aconteceu com os yanomamis chocou o mundo — e aconteceu com o garimpo atuando ilegalmente. O pior é que o caso se repete em muitos outros cantos, porque a Amazônia passou a ser terra sem lei. Fazem o que querem, porque havia um ministro como Ricardo Salles. Deixaram a boiada passar, e aí está a boiada matando os yanomamis.

Antonio Denarium afirmou que a crise dos Yanomamis não é responsabilidade do governo de Roraima e pontuou que todos os ex-presidentes, ao longo dos últimos 20 anos, têm uma parcela de culpa. O sr. concorda?
Eu não sou juiz para dizer de quem é a responsabilidade. Mas vamos pela lógica. Essas crianças não morreram há dez anos. Morreram agora. Estávamos fora do governo há seis anos. Os últimos quatro anos foram particularmente difíceis para os indígenas pela pandemia, pela falta de alimentos, pela contaminação decorrente da poluição das águas. A PF deve investigar as responsabilidades por esse genocídio.