Vereadora e motorista foram executados na rua Joaquim Palhares, no Estácio, Rio de Janeiro, por volta das 21h de 14 de março de 2018. Foram 13 tiros de pistola desferidos contra o carro. Nove romperam a lataria, quatro atingiram o vidro traseiro do veículo e explodiram a cabeça de Marielle Franco (PSOL-RJ). Anderson Gomes, o motorista, levou três pelas costas. Ao lado de Marielle, no banco traseiro, ainda estava a assessora, Fernanda Chaves, que sobreviveu. “Do nada, uma rajada de tiros”, descreveu Monica Benicio, viúva da vereadora.

O episódio que poderia ter-se tornado mais um crime municipal carioca ganhou uma repercussão póstuma irresistível e converteu a política quase desconhecida em um símbolo da luta pelos direitos das minorias. Hoje, se espalham pelo mundo grafites, inscrições, camisetas e cartazes com o rosto carismático e jovem de Marielle, congelado nos 38 anos, idade em que morreu. Imagens e palavras de ordem são agitados em passeatas, atos e manifestações. Quem encomendou o assassinato e por que são perguntas até hoje não respondidas que se tornam mais eloquentes, à medida que as tentativas de abafar o caso se sucedem.

Não surpreende que se acirre uma disputa pela mártir. Facções políticas e grupos de entretenimento têm concorrido para se apropriar da imagem da morta, seja para idolatrá-la como santidade, seja para aviltar sua memória ou mesmo convertê-la em heroína de folhetim. A disputa, enfim, magnetiza o Brasil. Nessa arena, a Globoplay assumiu a dianteira. Na sexta-feira 6, em evento realizado nos Estúdios Globo, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, o serviço de streaming e as equipes participantes anunciaram dois produtos que têm ambição de fixar definitivamente a narrativa sobre Marielle, um documental e outro ficcional.

“Marielle – o documentário” é a série em seis episódios que estreou na quinta-feira 12 na TV Globo, tem direção do jornalista Ricardo Villela e de Caio Cavechini, em parceria com um time de jornalistas investigativos das organizações Globo, que trabalham no caso há dois anos. “Queremos aproximar Marielle das pessoas”, diz Villela. “Não temos a pretensão de elucidar o crime, e sim mostrar a investigação.”

O primeiro capítulo exibe vídeos antigos e entrevistas. O ritmo é lento. O dado inovador é incluir mensagens de WhattsApp trocadas entre os envolvidos, cedidas pela família, o que dá um tom de melodrama à história. Sem lançar mão do pano de fundo político nem do clima de suspense, o episódio acompanha o nascimento, a formação e a ascensão política de uma jovem pobre da favela da Maré. Também retrata o drama de Anderson e a mulher, Agatha, para tomar conta de Artur, que sofria de problemas neurológicos.

Entre outras curiosidades do documentário, destaca-se o trecho que conta que Marielle poderia ter sido batizada como Antoniete, a partir da fusão dos nomes dos pais, Antonio e Marinete. O casal patrocinou sua festa de debutante em 1994, ocasião gravada em VHS e exibida no documentário. Os discursos da vereadora também aparecem nas sessões da Câmara de Vereadores do RJ, como o último que fez, uma semana antes de seu assassinato, diante de um milicianos que grita “Viva Ustra!”, lembrando o torturador Brilhante Ustra. Ela nunca deixava de responder.

Os demais episódios, cada um com duração entre 45 e 60 minutos, estão disponíveis para os assinantes do serviço. Cada um deles aborda um aspecto do crime, desdobramentos e o uso político que se fez dele tanto da parte dos milicianos como de políticos. “Tentamos fazer a história se contar sozinha”, afirma Cavechini”.

Série revela troca de mensagens

Robôs e ativistas

O evento da projeção e da entrevista coletiva foi ofuscado pela aparição, no final, do cineasta José Padilha e da roteirista Antonia Pellegrino, dona da produtora Antifa Filmes. Recém-chegado de Los Angeles, onde mora há uma década, Padilha afirmou que mal havia se reunido com Antonia para esboçar algumas ideias sobre o roteiro da série em oito episódios, a ser produzida, sem data de estreia.

Antonia adiantou o argumento: “O Brasil precisa contar as histórias de seus verdadeiros heróis. Marielle é uma heroína brasileira”. Na realidade, ela combinava a coprodução e distribuição do produto havia dois anos com a Amazon Prime Video. Agitadora feminista e casada com o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), ela representa a família de Marielle e de Monica Benicio. O contrato estava pronto para ser assinado quando Antonia recebeu uma proposta do diretor da Globoplay, Erick Bretas. Em busca de uma fatia disputada por concorrentes como Netflix, Amazon e HBO, o serviço de streaming da Globo fez uma oferta que agradou à Antonia e à família, bem como a Padilha, que ficará com a distribuição internacional do vídeo. A segunda temporada já está garantida. O acordo também favoreceu a tomada de depoimentos exclusivos para o documentário.

Padilha prometeu fazer a melhor série de sua vida com Marielle, dentro do projeto de retratar a violência no Rio de Janeiro. “Sou um contador de histórias. Dizem que sou de direita, já dei bastante dinheiro para o pessoal [de esquerda]”, afirmou. “Sou amigo de Marcelo Freixo. Conhecemos Marielle no mesmo dia, no cine Odeon, durante uma projeção de ‘Ônibus 174’.” Na ocasião, Freixo convidou Marielle para ingressar no PSOL. Antonia liderou a campanha de Marielle. E foi esta última que aproximou a amiga de Freixo.

A concordância entre familiares, amigos e produção não impediu que o anúncio fosse criticado tanto pelos robôs fascistas como por ativistas identitários. A cineasta Sabrina Fidalgo reclamou da inexistência de negros na equipe da série. “São três profissionais brancos à frente do projeto de série sobre a vida da maior ativista negra brasileira”, disse em artigo à Folha de S. Paulo.

“O oportunismo e a ganância na corrida de ‘quem leva mais’ com a tragédia da vereadora chegaram a seu nível máximo.” A escolha de Padilha é absurda porque o diretor “naturalizou nas telas de cinema polical” com os dois filmes de “Tropa de elite”. “Na noite do assassinato, estava brindando o sucesso de ‘O mecanismo’ no Copacabana Palace”, afirmou. “Marielle, nessa história toda, está sendo executada pela segunda vez.”

Padilha replicou no mesmo jornal que se considera vítima de linchamento de reputação e “sem direito de resposta”. Seus amigos afirmam que deseja se redimir de posições ideológicas de que se arrependeu, como ter exaltado o juiz Sergio Moro na série “O mecanismo”. “Marielle não é só um mito nacional, mas planetário”, disse. “Por isso, vamos levar a sua história ao mundo.”

Brasil miliciano

O público tem-se manifestado sobre a controvérsia. Agora, o mesmo grito que clama por justiça nas ruas anseia por uma narrativa diante da televisão que explique e transfigure o caso em simbologia – e, em certo sentido, em produto de entretenimento como uma novela. Vivemos tempos em que a fantasia se esforça por superar a verdade, até mesmo como modelo para explicar o mundo.

De qualquer forma, o legado de Marielle se encontra além da ficção: ela descortinou um novo cenário no Brasil quando denunciou o protagonismo das milícias que, depois de sua morte, só fizeram aumentar poder e influência, inclusive no núcleo do Estado. Se José Padilha transmitir tal mensagem conforme promete, parte da militância poderá canonizá-lo. Ele certamente irá gostar de não ser unanimidade.