SONHO CHINÊS Xi Jinping retoma discurso confucionista de respeito à família e ao Estado (Crédito:WANG YE)

Uma nova revolução cultural se desenvolve na China. O governo quer inibir o individualismo liberal e a mentalidade capitalista de ascensão social e, para isso, passou a restringir a entrada de empresas e capital estrangeiros nos setores da educação e tecnologia, ao mesmo tempo em que aumentou o controle sobre a instrução privada. Em 24 de julho, um decreto do Comitê Central do Partido Comunista proibiu que investidores estrangeiros tornem-se sócios de escolas e faculdades particulares. As instituições de ensino também foram proibidas de levantar dinheiro nas bolsas de valores. A restrição ao ensino se segue a vários impedimentos que atingiram empresas de tecnologia, como Alibaba e Didi, que estavam se tornando muito influentes e independentes pelos padrões de livre iniciativa e prosperidade estabelecidos pelo socialismo de mercado local. O governo quer acabar com o culto à personalidade dos grandes empreendedores.

Esse movimento chinês lembra a antiga Revolução Cultural dos anos 1960 e, apesar de mais sutil, tem a mão pesada do Partido Comunista. A reorientação ideológica não é uma volta ao maoísmo puro, mas redireciona a grade de ensino para o pensamento do presidente chinês Xi Jinping. O Estado chinês continua capitalista na economia e uma ditadura na política. A doutrina de Xi foi exposta no seu chamado “Livro Branco”, publicado em três volumes, entre 2013 e 2020. Não é uma contraposição ao “Livro Vermelho” de Mao Tsé-Tung; tampouco é uma nova teoria comunista. Na realidade, é o “sonho chinês” de enriquecer, mas sob um férreo controle estatal.

Três grandes grupos de educação privada têm ações negociadas em Nova York: TAL, New Oriental e Gaotu Techdu. Em 2020, o setor movimentou US$ 100 bilhões (R$ 518 bilhões). Mas o banco Goldman Sachs prevê que, após as medidas do PC, o mercado do ensino particular na China encolherá 76%. Se no caso das empresas de tecnologia as restrições tiveram como objetivo evitar que os grandes conglomerados acumulassem poder ao redor de alguns magnatas, no caso do ensino privado o objetivo é induzir os pais a matricularem os filhos no ensino público. “Jack Ma, fundador da Alibaba, foi um exemplo da repressão. Ele criticou o regime e desapareceu por meses. Voltou, mas calado”, diz o pesquisador Vitor Ido, do Instituto South Centre em Genebra. “O pragmatismo é grande na política de Xi. Nos últimos anos, houve inclusive uma tentativa de supressão das discussões marxistas nas universidades. Aconteceu uma retomada do discurso neo-confucionista, de respeito à família e ao Estado.”

Pressão demográfica

Segundo os especialistas, o PC chinês realiza as mudanças também por razões demográficas e econômicas. Mesmo com uma população imensa de 1,4 bilhão de pessoas, o governo teme que os chineses, ao ascenderem à classe média, tenham menos filhos. A preocupação demográfica é tão grande que neste ano o governo passou a permitir que cada casal tenha três filhos — o limite anterior era dois. O governo também acelerou a mudança de milhões de chineses da etnia Han — majoritária no país — para províncias habitadas por minorias. É o caso do Tibete e de Xinjiang. Nesta última, os turcos uigures eram majoritários até a década passada, mas já são superados pelos Han. A repressão aos muçulmanos é feroz.

Ao mesmo tempo, o governo precisa manter um crescimento econômico de 7% ao ano, para dar emprego a oito milhões de jovens que ingressam no mercado de trabalho a cada ano. “Embora a China tenha tido um crescimento econômico gigantesco nos últimos 30 anos, é bom lembrar que quase 2/3 da sua população ainda é pobre. Ao emitir as novas diretrizes para a educação, o governo quer que as pessoas da classe média procurem mais as escolas públicas. “Outro objetivo do governo é levar o desenvolvimento à China rural”, diz Marcelo Uehara, professor de relações Internacionais. Ele diz que o desafio de Xi é manter o crescimento econômico e reforçar o controle político do PC. Deste desafio, saiu a salada de ideias que é o neo-confucionismo misturado ao socialismo de mercado, que o presidente Xi chama de “sonho chinês”.