Kamala Harris não é apenas a primeira mulher a chegar à vice-presidência dos EUA. É também a primeira negra e a primeira com ascendência asiática a chegar ao cargo (seu pai era jamaicano, sua mãe, indiana). São marcas históricas que embalam uma carreira marcada pelo pioneirismo. O feito não é apenas simbólico. Ela tem uma trajetória consistente no partido democrata, pelo qual concorreu nas primárias deste ano e tornou-se a primeira senadora negra da Califórnia, em 2017. Com seu papel de liderança, habilita-se desde já a tornar-se uma das principais vozes do novo governo. Com isso, projetará sua influência no cenário internacional, rivalizando com a chanceler alemã Angela Merkel, que é a principal líder da europa. No mundo anglófono, Kamala iguala a proeminência da líder mais forte dos últimos 40 anos: Margaret Thatcher.

FINAL FELIZ Kamala celebra vitória com o marido, o advogado Douglas Emhoff (Crédito:Divulgação)

O poder vai além da gestão imediata. Biden tomará posse no dia 20 de janeiro com 78 anos. Nenhum dos 46 presidentes do país chegou ao poder com essa idade. Se ele desistir de tentar um segundo mandato, aos 82 anos, a vice-presidente desde já se habilita a liderar os democratas em 2024. Pode conseguir algo que Hillary Clinton tentou sem sucesso diante de Trump: tornar-se a presidente do país mais poderoso do mundo. A política tem se esforçado. É conhecida pela agressividade nos debates. Na campanha pela candidatura democrata, afrontou de forma quase insultuosa Biden por supostamente não ter defendido a causa dos negros. Foi um passo em falso. Não só o novo presidente tem toda a sua carreira dedicada ao fim da discriminação, como foram os próprios líderes negros que deram a largada decisiva à corrida do democrata à Casa Branca no estratégico estado da Carolina do Sul. Redimiu-se ao se tornar uma das primeiras apoiadoras de Biden após os confrontos. A assertividade, por outro lado, lhe garantiu os primeiros passos na carreira política, quando foi eleita a primeira negra procuradora-geral da Califórnia. Ficou conhecida pela linha-dura, apoiando a ação firme da polícia, o que afastou-a de causas tradicionais na esquerda do partido como o combate às drogas e a luta contra os erros judiciais. Mas soube capitalizar os protestos do movimento Black Lives Matter este ano. Ela valoriza o establishment, o que a aproximou de um dos políticos mais longevos e emblemáticos da legenda.

Nascida em Oakland (Califórnia), Harris foi criada pela mãe, pesquisadora de câncer e ativista de direitos civis. Os pais se divorciaram quando ela tinha sete anos. Aos 12, mudou-se com a mãe e a irmã mais nova para Montreal, no Canadá. Depois de frequentar a universidade Howard, em Washington, estudou Direito na Universidade da Califórnia em Hastings e iniciou carreira na Promotoria do condado de Alameda. Em 2014, ela se casou com o advogado Douglas Emhoff, que era divorciado e tinha filhas de outro casamento. Ele tem a mesma idade dela, 56 anos. Serão o primeiro casal interracial a ocupar suas funções na Casa Branca, e Emhoff será o primeiro judeu a fazer parte da primeira e segunda famílias do país. Simbolicamente, Kamala personifica a vitória sobre o preconceito e o sonho de imigrantes que conseguiram fazer a América. Sua identidade e trajetória familiar tradicionalmente dificultariam qualquer pretensão na política americana. Nos EUA de 2020, que desejam se recuperar de um governo conflagrado e caótico, esse background virou um ativo valioso. E aponta um caminho importante. É uma mensagem poderosa ao mundo nessas eleições.

As mulheres no poder

Jill Biden (Crédito:Divulgação)

O protagonismo feminino não se resume ao inédito posto de vice-presidente. Com Jill Biden, os EUA terão pela primeira vez uma primeira-dama que trabalha apesar da rotina no poder. Professora de Inglês no Northern Virginia Community College, ela declarou: “quero que as pessoas valorizem os professores”. Não é apenas um gesto político para reforçar o perfil classe média do futuro presidente. Aos 69 anos, a nova primeira-dama tem um histórico ligado à educação. Manteve-se focada no magistério mesmo quando se mudou para Washington após se casar em 1977 com o senador, quando este era um viúvo com dois filhos pequenos do primeiro casamento. Juntos, eles tiveram uma filha. Na Casa Branca, Jill vai ter uma vida completamente diferente da ex-modelo Melania Trump, que usou a moda e o glamour para moldar sua persona pública. A nova primeira-dama não é uma “mulher-troféu”. “Ensinar não é o que eu faço. É quem eu sou”, ela se definiu. Por isso, já é chamada de “primeira-professora”.

Stacey Abrams (Crédito:Divulgação)

Outra mulher virou um ícone nessa eleição é Stacey Abrams. Formada em Yale, ela concorreu para o governo da Geórgia há dois anos, e perdeu. Acusou o oponente de ter exercido a supressão de votos, prática eliminada pela lei que garantiu os votos aos negros em 1965, mas parcialmente restabelecida em 2013 pela Suprema Corte. Ela transformou a derrota em uma cruzada para garantir o direito ao voto, e o resultado se viu neste ano. Conseguiu angariar 800 mil inscritos para as eleições presidenciais e fez os republicanos perderem na Geórgia pela primeira vez em 28 anos. Seu movimento foi estendido para outros estados, como o Wisconsin. No segundo turno para a escolha dos senadores do seu estado, em janeiro, ela pode garantir a eleição de dois correligionários e assegurar a maioria democrata no Senado.

Álbum de família

Kamala com a mãe e a irmã mais nova (esq.) e com parentes maternos indianos. Filha de imigrantes, a nova vice-presidente representa um novo país multicultural. O pai era jamaicano