A chuva batia forte. Das telhas do prédio térreo da sede do PDT em Brasília ecoava um som retinente, por vezes quase ensurdecedor. De pé na ponta de uma ampla mesa na qual almoçavam cerca de 40 pessoas – os principais dirigentes do partido e os atuais e novos deputados e senadores -, Ciro Gomes enfrentava o barulho torrencial com um discurso entusiasmado.

“Estamos com a faca e o queijo nas mãos”, disse ele na tarde da quarta-feira 7.“Iniciamos a construção de uma alternativa progressista não petista para a sociedade”. Ao final, o presidente do PDT, Carlos Lupi, entoou um “parabéns a você”. Na véspera, fora aniversário de Ciro. O político paulista, mas de sotaque cearense, completou 61 anos à frente daquela que pode ser a sua maior tarefa: liderar um movimento de oposição com a capacidade de redimir e consertar os graves erros cometidos pelo PT durante o período em que atuou para ser hegemônico sobre todos os demais agrupamentos de centro-esquerda do País.

Claro, para nova ceia da oposição, o PT não foi nem será convidado a repartir o pão. Se tudo o que começou a ser pavimentado der certo, Bolsonaro lidará com uma oposição de outra natureza e caráter. Que declara não trabalhar pelo “quanto pior, melhor”, doutrina esta professada quase como um dogma pelo petismo. Que se pretende propositiva, discutindo pontualmente com o governo e até podendo, em determinados momentos, negociar e apoiar propostas. Que não terá como tarefa reconstruir a narrativa da história, como reza a cartilha do PT, ao se declarar vítima de um “golpe político-midiático” e colocando-se como a única alternativa ao “retrocesso democrático” que diz enxergar no governo eleito de Jair Bolsonaro. “Esse é o nosso primeiro ponto de diferença”, disse Ciro à ISTOÉ. “Nós não vemos a democracia em risco como o PT”. Para Ciro, Bolsonaro venceu a disputa nas urnas merecidamente. É o presidente eleito, e isso precisa ser respeitado. As frases de Bolsonaro ao longo da sua vida e algumas de suas declarações e dos demais integrantes do seu futuro governo, porém, exigem que um sinal de alerta seja aceso. Um exemplo nesse sentido foram as declarações emitidas contra o Mercosul, a China e favoráveis à mudança da embaixada brasileira em Israel de Telaviv para Jerusalém, que geraram uma reação de países árabes como o Egito. “Em 15 dias, diversas declarações desastradas provocam um risco desnecessário ao país”, critica Ciro. É desse tipo de pontuação que vem a tarefa proposta nesse novo modelo de oposição. É, segundo esse novo grupo liderado por Ciro, a tarefa de guardar, vigiar, proteger a institucionalidade democrática e o interesse nacional. “O PT gosta de imaginar um monstro e depois aparelhar todos contra esse monstro que ele mesmo criou”, fez coro o senador eleito Cid Gomes (PDT-CE), irmão de Ciro. “O PT criou Bolsonaro. Aí, depois, pressiona todo mundo a dizer que só ele pode combater o monstro. Não é assim”.

Em meio às eleições, todas as pesquisas apontavam que Ciro, terceiro lugar no pleito, poderia reunir as melhores condições políticas para superar Bolsonaro no segundo turno. Chances que os levantamentos nunca apontavam para o candidato do PT, Fernando Haddad. O pedetista não alcançou o segundo turno, mas o resultado ajudou Ciro a se credenciar para a missão de unir os demais partidos de oposição numa estratégia de enfrentamento do governo Bolsonaro e de contraponto à velha, autoritária e surrada tática do PT, condenada não só pelos brasileiros nas urnas, como por ex-petistas históricos. Ao discorrer recentemente sobre sua decepção com o PT, Eduardo Jorge revela que abandonou a nau antes do naufrágio porque perdeu a confiança na direção da legenda da estrela rubra. “Eles se comportavam com uma visão muito própria da esquerda revolucionária de que o partido é mais importante do que o País. Para eles, o partido é mais importante do que o Brasil. Mais importante, inclusive, do que a vida do próprio povo”.

Sem caos

Como Eduardo Jorge, as esquerdas hoje não se enxergam mais no estilo de fazer oposição do PT, que como um niilista da política aposta no caos para sobreviver. As legendas que orbitam do campo da esquerda não querem ser mais um mero puxadinho do PT. Assim, é eloquente que o grupo oposicionista que emerge sob a liderança de Ciro Gomes tenha dispensado o PT e sua linha auxiliar, o PSOL, das tratativas para a formação do bloco de oposição. “Não é mais possível aceitar o hegemonismo que o PT quer impor aos demais partidos”, afirma o pedetista André Figueiredo. Mais do que isso. O isolamento do PT no campo da oposição é fruto da postura de um partido incapaz de uma convivência democrática mesmo com aqueles com os quais cultiva afinidades eletivas. Para os petistas, nada que não tenha sido imposto pelo PT é passível de legitimidade. A verdade é que o partido, agora fora das cercanias do poder depois de 13 anos, não alimenta a menor pretensão de lutar nas raias da oposição. Sua única intenção é partir para boicotar o governo e impedir que o País saia da crise política, econômica e moral sem precedentes que os próprios petistas legaram aos brasileiros.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Ao se buscar hegemônico, o PT sonhou um dia em tornar-se uma espécie de PRI (Partido Revolucionário Institucional) à brasileira. Segundo a perfeita definição cunhada pelo escritor Mario Vargas Llosa “era a ditadura perfeita”. Por 71 anos, o PRI governou o México com “auras de democracia”, sem a necessidade de aparatos repressivos ou do flerte com a censura. A chave do sucesso para a perpetuação no poder era a distribuição da riqueza do petróleo apoiada em critérios clientelistas, as eleições com indícios claros de fraudes e uma contundente retórica política de esquerda capaz de magnetizar renomados escritores e intelectuais por décadas. Qualquer semelhança, não é coincidência. Ao presidente do país, também comandante-em-chefe do PRI, cabia controlar a bancada do partido nas Câmaras Legislativas. Invariavelmente, ungia o próprio sucessor. A hegemonia, acalentada pelo PT por aqui, findou com a posse de Vicente Fox, em 2000, seguido por seu ministro Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional (PAN). Depois de 12 anos na oposição, o PRI regressou ao poder em 2012, com a eleição de Enrique Peña Nieto. Que, para o bem do Brasil, a nós seja reservada uma sorte diferente.

Nos seus primeiros movimentos, já ficou claro que a estratégia de Ciro tem grandes chances de sucesso. Os demais partidos do campo da centro-esquerda se mostram dispostos a se unir na proposta desse novo modelo de oposição. “As conversas estão fluindo muito bem, e adiantadas”, revela o deputado Júlio Delgado (MG), um dos artífices da união no PSB. Com a formação de blocos das demais legendas de esquerda tanto na Câmara quanto no Senado, o isolamento do PT é o caminho natural. Os blocos devem unir PDT, PSB e Rede. Mesmo o PCdoB, que tinha a vice-presidência na chapa de Haddad, tende a juntar-se ao grupo. E até um partido menos identificado com a esquerda, o PHS, ensaia uma aliança no Senado. Também há negociação com o PPS. Se a nova coalizão de esquerda der certo, os dois blocos somariam 78 deputados e 13 senadores. Seriam as maiores bancadas tanto na Câmara quanto no Senado. “A ideia é empoderar o Congresso e fazer com que ele volte a ser o ambiente da negociação política”, prega Cid.

É sobretudo uma forma bem diferente de exercer o papel de oposição. Na qual se torna possível o diálogo mesmo com outros campos da política. E até mesmo com o governo ao qual o grupo se opõe. “Não dá para fazer oposição contra tudo e contra todos. Não vamos no quanto pior, melhor”, assevera Júlio Delgado. O PSB, por exemplo, defende um modelo de reforma da Previdência na qual continuaria o atual sistema de repartição simples (os trabalhadores da ativa contribuem para pagar as aposentadorias) com um sistema de capitalização. No governo Bolsonaro, há quem defenda modelo semelhante. “Se for assim, por que iremos rejeitar? Somente porque somos oposição?”, questiona Delgado.

Aliado preferencial

Na formação dos blocos, o PSB tende a ser o principal parceiro do PDT de Ciro Gomes. Até porque, na Câmara, possui bancada maior. O PSB elegeu 32 deputados, e o PDT, 28. “Não trabalhamos em torno de um partido político. Unidos no bloco, todos são igualmente importantes”, avalia o líder do PDT na Câmara, André Figueiredo (CE). É mais um ponto de intersecção: não se pretende trocar a hegemonia do PT por outra. Assim, as conversas têm atraído mesmo o PCdoB que, ao longo da vida, sempre atuou à sombra do PT. “Ciro não contribuiu para nossa derrota”, afirma Manuela D´Ávila, a candidata a vice na chapa de Fernando Haddad. “Falar agora de 2022 ou disputar hegemonias é não compreender a necessidade de que precisamos nos unir”. Para o líder do PCdoB na Câmara, deputado Orlando Silva (SP), “o PT não é o centro do mundo, nem o centro da política no Brasil”. Contra o isolamento do PT, poderia ficar apenas o PSOL. Mas mesmo o partido de Guilherme Boulos anda meio reticente. “Até agora, não fomos procurados pelo PT”, disse a ISTOÉ o deputado Chico Alencar (PSol-RJ). “Às vezes, nós nos unimos na necessidade”.

Na mesma linha, Ciro Gomes conversou na quarta-feira 7 com Marina Silva, da Rede. Na Câmara, o partido de Marina elegeu apenas uma deputada, a índia Joênia Wapichana (RR). No Senado, montou uma bancada maior: cinco senadores. Terá posição importante na formação do bloco. “Marina tem as mesmas preocupações quanto ao nosso presente e o nosso futuro. E a disposição por uma rotina de diálogo das nossas forças, para formarmos uma frente não oportunista, honesta, decente”, diz Ciro. O pedetista faz questão de ressaltar que o isolamento do PT não é o objetivo do grupo. É uma consequência. “Nossa tarefa não é se contrapor ao PT. Mas achamos que a hegemonia pouco crítica do PT já deu. Passou da conta e fez muito mal ao Brasil. Não existiria Bolsonaro sem o antipetismo, que foi introduzido por ele”. Há 30 anos, quando se escrevia a Constituição, o sociólogo Paulo Delgado integrava a bancada do PT. No final do governo Lula, afastou-se do partido, e hoje, de longe, percebe os erros da sigla e critica seus métodos. “Os demais partidos de centro-esquerda estão isolando o PT porque nada ganharam fazendo oposição do jeito petista. Esse jeito foi rejeitado pelas urnas. Ou o PT entende esses sinais ou vai sucumbir”, avalia ele. “Se o PT não quer ouvir Cid Gomes, que escute pelo menos Mano Brown”. Como resume bem o senador Cristovam Buarque (PPS-DF) “a estrela envelheceu”.  Para os brasileiros, o novo paraíso não a comporta mais.

Entrevista – Ciro Gomes
Quinze dias depois da eleição de Bolsonaro, Ciro Gomes voltou a Brasilia para comandar uma reunião do PDT e reorganizar a centro-esquerda. Na quarta-feira 7, um dia após completar 61 anos, concedeu entrevista exclusiva à ISTOÉ

As conversas que vêm acontecendo entre o PDT e outros partidos da centro-esquerda visam formar uma oposição que se contraponha ao PT?
Precisamos deixar claro. Nossa tarefa não é se contrapor ao PT. Não temos nada contra o PT e nenhuma necessidade de fazer vendetta. Agora, a hegemonia pouco crítica que o PT exerce há um tempão já deu. O que buscamos é criar as condições de trabalhar uma oposição ao novo governo de uma forma mais propositiva e independente dessa postura hegemônica do PT.

Por que isso é importante?
Porque o que aconteceu é resultado da forma como o PT construiu. O PT criou Bolsonaro. Não existiria Bolsonaro sem o antipetismo. E o antipetismo é uma reação a um tipo de discurso e de comportamento que o PT criou. Temos que ultrapassar isso.

E como se daria esse novo modelo de oposição?
Não vemos a democracia em risco como vê o PT. Nós reconhecemos a legitimidade da vitória de Bolsonaro. Queremos que ele acerte a mão. Pelo menos por enquanto, não há que se falar em risco da institucionalidade democrática.

Mas é preciso ficar alerta?
O que propomos é um permanente diálogo entre as forças progressistas para proteger a institucionalidade democrática e o interesse nacional.


É preocupante, por exemplo, que haja já um conjunto de arestas desnecessárias.O quê, por exemplo?
O discurso que minimiza a importância do Mercosul e de importantes parceiros comerciais. O discurso sobre a China, que provocou um duríssimo editorial de um jornal chinês. A questão de Israel, gerando uma dura reação do Egito, em torno de algo que nem chegou mesmo a ser discutido de forma oficial.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias