O olhar dos soldados romanos é de profundo ódio e escárnio. “E agora, onde está seu Deus? Por que não pede para tirá-lo daí”, provoca um. Um giro de cabeça à direita e vê-se uma das mãos presas na extremidade da cruz. Do outro lado, a outra mão está do mesmo modo, sangrando. É assustador. Por alguns minutos, a câmera faz o espectador ter a sensação de ser ele o próprio Jesus Cristo crucificado.

A tecnologia que permite a maior imersão já experimentada na relação vídeo-espectador tem o nome de realidade virtual (VR, no mercado internacional) e começa a dar seus primeiros frutos no Brasil. Há ainda um bom caminho a ser explorado para a popularização da tecnologia, a começar pelo desafio de se baratear um aparato essencial para a experiência do espectador, que fica na casa dos US$ 700. A cena acima é da série The Story of Christ, do diretor David Hansen com produção executiva de Enzo Sisti, que ganhou o Oscar com A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. As imagens foram captadas pela Panograma, empresa especializada no ramo que tem como sócio o produtor João Marcello Bôscoli. Games, cinema e música, não por acaso, devem ser os setores que vão sentir o maior impacto na primeira etapa de VR no Brasil.

As primeiras marcas, para quem investiu, são otimistas. Ivete Sangalo, com um clipe produzido pela O2 Filmes, ficou em segundo lugar na lista do Facebook dos vídeos em VR mais acessados no mundo, mesmo com ressalvas de qualidade levantadas pela comunidade da realidade virtual. Foram mais de 18 milhões de visualizações para a música O Farol. Paul McCartney já havia aberto as comportas e chamado as atenções para o VR quando lançou, também no ano passado, um vídeo de Live and Let Die gravado em um show ao vivo, com a câmera de 360 graus colocada sobre seu piano. A estratégia de Paul foi para lançar ele mesmo um aplicativo de VR desenvolvido pela empresa Jaunt. E vieram outras experiências de Paul em estúdio, como a que ele explica sobre gravações de Coming Up e de Dance Tonight.

A experiência do VR é culturalmente transformadora e tem potencial para se tornar não apenas uma diversão tecnológica. Ainda que de forma passiva, estar ao lado do artista, e não mais na plateia, causa um dos primeiros impactos. Poder você mesmo editar as cenas, escolhendo para onde quer olhar e em que detalhe quer prestar mais atenção, é outro. Mas é preciso ainda chegar ao nível 2 do processo evolutivo do VR para se explorar melhor essa mídia. Com os óculos, indispensáveis para se mergulhar na cena, você vira a cabeça para o alto e vê os detalhes dos holofotes coloridos de um show de Paul McCartney. Há informação ali, ou só curiosidade. Depois abaixa a cabeça, olha para o lado e observa os guitarristas de Paul gesticulando discretamente entre si detalhes sobre a música. Mais uma vez, mais informação. Ou só diversão. E então, olha para a frente e vê o público vibrando com seu ídolo. Outra experiência. O ambiente precisa ser assim, rico, para justificar um investimento em VR. Uma imagem estática sem riqueza de detalhes a ser explorada pela periferia do foco central pode criar a seguinte interrogação na cabeça do espectador: se eu só tenho vontade de olhar para frente, porque mesmo paguei US$ 700 dólares por esses óculos?

João Marcello diz que tem claro o que quer com o investimento que tem feito com VR. “A realidade virtual permite ao público ter a sensação de estar no mesmo ambiente do artista, fazendo parte do seu território privado, em lugares onde não há ingressos à venda. Por exemplo: se quiser ver a gravação de uma música do Drake no estúdio, ou você está trabalhando na produção ou é amigo de alguém ligado ao processo. Caso contrário, é algo inacessível. E mesmo tendo algum contato, há limitações; não dá pra levar 50 pessoas para dentro do estúdio – ou camarim, set de filmagens ou salas de ensaio. Com a realidade virtual isso é possível.”

Sua empresa, no Brasil, está na frente de uma corrida que ainda se mostra tímida. O mundo não produz o que poderia em VR porque espera que o mercado se solidifique. “Não vou fechar as portas e esperar três anos para isso acontecer”, diz ele, que já realizou no País mais de 50 vídeos musicais em realidade virtual, dentre eles os de Dianne Reeves e Marcelo Mariano, Chitãozinho & Xororó, Juliana D’Agostini, Rappin’ Hood, Luciana Mello, Anavitoria, Wilson Simoninha e Luiza Possi, e, lá fora, gravações de Tiësto, Paul Oakenfold, Stevie Wonder, Gary Clark Jr e Fatboy Slim.

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Uma segunda questão é levantada pelo produtor: “A realidade virtual é a maneira que vai recuperar o protagonismo da música no mundo.” A linha do tempo do consumo de música pela Humanidade, de fato, mostra uma crescente disputa entre os sentidos físicos que provoca essa perda de relevância da música no dia a dia dos ouvintes. Ao mesmo tempo em que se comemora o fato de nunca ter-se escutado tanta música, nunca se ouviu música tão mal. O vinil, por não ter o poder de sair da sala a bordo de um pesado toca-discos, não admitia concorrência. Era a música e o ouvinte. Quando surge o CD player portátil, a música ganha mobilidade dentro dos carros e a audição passa a concorrer com outras sensações. Os celulares levam hoje sons a todos os lugares e, na maioria das vezes, como pano de fundo. “Com o VR, não tem para onde correr”, diz João. “Só gostaria de que as pessoas prestassem atenção apenas em uma música por dois minutos”.

É diletante, mas apenas um dos efeitos colaterais de uma nova mídia que deve suar para sair do status de curiosidade e atingir o de necessidade. Se for repetida mais três vezes com outros artistas, a experiência de Ivete Sangalo pode apontar as grandes companhias a investir mais em VR. No pensamento cíclico do quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, a resposta pode ser a dos cristãos, a galinha. É ela que tem de ser criada para que os ovos apareçam.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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