Recentemente vimos uma série de abordagens românticas sobre o fato de Elza Soares ter falecido no mesmo dia (20 de janeiro) que seu ex-marido, o ex-jogador de futebol Mané Garrincha, exatamente 39 anos depois.

“Ela foi encontrar seu grande amor”, muitos dizem, mas por que Elza Soares não pode viver um grande e saudável amor em vida? Aliás, por que tantas mulheres como ela, precisam escolher entre amar e sobreviver?

Por que a Elza vinda do Planeta Fome, a voz que calou a plateia que ria da pobreza no programa de rádio de Ari Barroso, que cantou para não perder mais filho por conta da desnutrição, que foi obrigada a casar com 12 anos, por que essa mulher, neta de escravos, que lidou com tantas perdas, ainda teve que lidar com a violência doméstica?

Garrincha, seu grande amor, seu grande agressor, faleceu de cirrose hepática pouco tempo após a separação do casal, depois de 16 anos juntos. Eles, no auge de suas carreiras, tiveram que sair do Brasil com os filhos após terem a casa metralhada no período da ditadura militar. No exterior, Garrincha não tinha o mesmo prestígio e oportunidades para jogar. Generosa e sensível, com uma carreira em ascensão, ela tentou cuidar e ser compreensiva com ex-marido que estava em declínio e não conseguia sair do alcoolismo.

Elza era criticada e até mesmo chamada de bruxa ciumenta por parte dos amigos de Garrincha. Nem ela, nem Garrincha tiveram um Estado que os amparasse. Tiveram  sim, um Estado que tentou assassiná-los. Ela nunca perdoou a ditadura pelo que fizeram com suas vidas. Em 2014, em seu artigo “A Copa que não comemorei”, conta sobre a frustração de Garrincha não ter jogado a Copa de 70. “Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje. Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”.”Inclusive, a última publicação do canal de Youtube de Elza antes do seu falecimento é um vídeo dela com Agnes Nunes cantando a canção.

A ditadura não justifica a violência cometida por ele contra Elza. Se assim fosse, todos os exilados e vítimas de torturas atentariam contra suas companheiras.

Elza, além de enfrentar a ditadura, poderia ter sido mais uma vítima fatal de violência doméstica. É preciso lembrar, mais do que o amor entre os dois famosos, que Elza sobreviveu ao conturbado relacionamento cheio de traições e violência porque há exatos 39 anos, apesar de amar muito, ela disse: Não! Recordar e reforçar que foi justamente a separação que a fez viver até os 91 anos.

As marcas da violência de Garrincha contra Elza estão registradas em entrevistas, em documentários e mesmo na arte de Elza, que nos seus últimos álbuns fez da arte um grande serviço à população.

O álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, seu primeiro disco só com canções inéditas, lançado em 2015, traz diversas canções sobre o universo das mulheres, entre estas a canção “Maria da Vila Matilde”, composição de Douglas Germano, e que reflete o retrato do problema da violência doméstica contra as mulheres no Brasil.

A canção que tem como refrão principal  “Cê vai se arrepender de levantar a mão prá  mim”, também possui um toque pessoal de Elza

“Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E prá cima de mim? Prá cima de moi? Jamais, Mané!

E nestas quase quatro décadas, o que evoluiu para mudar situações como esta? Por que os índices de violência contra mulher ainda são tão grandes a ponto de o Brasil ser considerado o quinto país no mundo onde mais se mata mulheres? Por que o país segue cheio de Garrinchas? Por que a violência segue banalizada e até mesmo romantizada? Que sociedade é essa que ensina as mulheres a tolerarem tanto? Que desconhece e ainda demoniza o feminismo?

Felizmente, ainda que timidamente, vemos por parte da justiça e de alguns grupos, a reeducação dos homens agressores e de outros que buscam debates por uma masculinidade mais saudável. O documentário “Silêncio dos Homens”, traz importantes relatos sobre estas questões.

Há muitas cobranças e julgamentos também às mulheres que permanecem em situação de violência. Condená-las não é solução. É preciso um Estado e um amparo social para tratar o casal e toda uma família que vive em situação de violência.

A promotora Gabriela Manssur, em entrevista/live a Istoé, relata que as vítimas começaram a pedir para ela conversar com seus maridos agressores. O apelo das mulheres fez com que a promotora criasse um projeto de atendimento a eles, o que posteriormente virou lei. Os números de reincidentes diminuíram mais do que a prisão. Uma prova que reeducar é possível.

Hoje, é necessário discutir políticas públicas que tratem não apenas a violência, mas também a consciência do machismo estrutural e suas sequelas, seja em instituições públicas, privadas, campanhas publicitárias, novelas, filmes, fóruns, salas de aula e desmistificar a ideia errônea do feminismo.  Talvez, ir além, institucionalizar o feminismo, tornando-o disciplina obrigatória em escolas e até mesmo em concursos públicos.

A reeducação precisa ser coletiva, social. Não basta combater a violência, é preciso ensinar a viver de forma igualitária.

Quem sabe assim, no futuro, com uma sociedade mais consciente, um Estado preparado para dar amparo, Elzas e Garrinchas possam viver relação mais saudável, menos tóxica, juntos até o final.  Enquanto isso, vale reforçar que o 180 é um serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra a mulher. Além de receber denúncias de violações contra as mulheres, a central encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos.

Em caso de violência, denuncie! E se você é um vizinho, amigo, estranho que esteja presenciando uma situação de violência, meta a colher, denuncie!

Assista Elza cantando “Maria da Vila Matilde”

Escute o álbum “A mulher do Fim do Mundo”

https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_ljuTdv2L0hDvvE28v5LPbwI80H9LlbiH0

Melina Guterres é jornalista,roteirista, fundadora da Rede Sina e página no facebook “As mulheres que dizem não”