Neste momento, ao menos 49 crianças brasileiras estão presas em abrigos nos Estados Unidos. Seus pais ou responsáveis encontram-se a no mínimo 300 quilômetros de distância, detidos em centros prisionais após serem levados pelo Serviço de Imigração americano acusados de tentarem entrar ilegalmente no país. Outras 2,3 mil crianças e adolescentes, a maioria natural de países como Costa Rica, Nicarágua e Panamá, encontram-se em situação semelhante. Se tiveram sorte, depois de alguns dias amontoadas em grandes gaiolas onde receberam apenas um colchonete e um cobertor térmico para dormir no chão, elas foram transferidas para lugares onde agora dividem beliches, banheiros e refeitórios com companheiros da mesma tragédia. Não falaram com os pais nem os pais falaram com eles. Crianças de dois, três anos, estão passando por isso. Um bebê de nove meses está em Nova York e a mãe, presa em Houston, no Texas, estado onde é feita boa parte das detenções. Matheus, brasileiro de 16 anos com deficiências neurológicas que o impedem de se alimentar, de se banhar sozinho e de entender o mundo como um adolescente de 16 anos o compreende, rodou dez meses por abrigos, sozinho. Agora está em Connecticut. Sua avó e responsável, a brasileira Maria Bastos, encontra-se detida a dois mil quilômetros. Maria nem tentou furar a imigração. Pediu asilo sob argumento de que sofria perseguição policial onde morava no Brasil e seguiu os procedimentos exigidos. Mas enquanto corre a análise pelos órgãos competentes, foi presa e separada do neto.

“Uma prática cruel e em dissonância com instrumentos de proteção aos direitos da criança”, declarou o Itamaraty

Não é preciso ser pai ou mãe para imaginar o desespero de quem está vivendo a situação, tampouco identificar o tamanho de sua desumanidade. É um tipo de terror que evoca momentos bárbaros da história, alguns recentes, como aqueles nos quais os nazistas do exército de Adolfo Hitler separaram famílias durante a Segunda Guerra. Imaginava-se que atrocidades do gênero tivessem ficado para trás, mas o presidente dos EUA, Donald Trump, mostrou que não é bem assim. As cenas levadas a público na semana passada são resultado do que ele chamou de tolerância zero para imigrantes, implantada desde abril. A política determina que todo indivíduo tentando atravessar a fronteira ilegalmente seja processado criminalmente. Antes, famílias que pediam asilo podiam ou não ser detidas e permaneciam juntas, mesmo que levadas a abrigos.

Na quarta-feira 20, Trump foi obrigado a recuar. Ele assinou um decreto determinando que as famílias presas nas fronteiras sejam mantidas unidas. Um dia depois, determinou às agências governamentais responsáveis pelos cuidados com as crianças que iniciassem as providências para que elas fossem devolvidas aos familiares. O presidente resolveu voltar atrás depois de intensas pressões feitas em todas as esferas. Líderes europeus como Emmanuel Macron, da França, e Angela Merkel, da Alemanha, voltaram a defender uma política mais humana em relação aos refugiados. Representantes dos países mais diretamente afetados, como México e Honduras, reclamaram do tratamento dado aos imigrantes. “É uma política cruel e desumana”, disse Luis Videgaray, secretário de Relações Internacionais do México. O presidente hondurenho, Juan Hernandez, afirmou que a atitude do governo americano “viola o princípio universal do interesse superior da criança.”
A reação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em geral menos contundente e mais protocolar, também surgiu em outro tom. “O governo brasileiro acompanha com muita preocupação o aumento de casos de menores brasileiros separados de seus pais ou responsáveis que se encontram sob custódia em abrigos dos Estados Unidos, o que configura uma prática cruel e em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos das crianças”, posicionou-se o governo brasileiro em nota oficial.

Nos EUA, as críticas partiram de expoentes do partido Democrata, oposicionista, e de membros do próprio partido de Trump, o Republicano. A manifestação mais exemplar de como a questão afetou ambos os partidos aconteceu nas vozes das ex-primeiras-damas Laura Bush, mulher do ex-presidente republicano George Bush, e Michele Obama, esposa do democrata Barack Obama. Na noite da segunda-feira 18, Laura publicou no twitter: “Moro em um estado de fronteira. Aprecio a necessidade de reforçar e de proteger fronteiras internacionais, mas esta política de tolerância zero é cruel. É imoral. E isso quebra meu coração.” Michele compartilhou a mensagem de Laura e escreveu: “Às vezes a realidade transcende os partidos.”
A pressão também foi feita dentro de casa. Uma das filhas de Trump, Ivanka, que trabalha na Casa Branca, e a mulher dele, Melania, pediram publicamente para que o presidente retirasse a determinação. Em uma conversa privada com o pai, Ivanka perguntou: “O que estamos fazendo sobre isso, papai?”. De origem eslovena, Melania, disse no domingo 17 que “detestava” ver crianças separadas dos pais. Em um comunicado, a primeira-dama afirmou: “Precisamos ser um país que respeita as leis, mas também um país que governa com o coração.” Na quinta-feira 21, a primeira-dama visitou abrigos para crianças no Texas, entre eles um serviço onde estavam alojadas sessenta crianças entre cinco e 17 anos separadas recentemente dos pais. A boa vontade de Melania, contudo, esbarrou em uma gafe que repercutiu mal: na viagem, ela trajava uma jaqueta com a frase “I really don’t care. Do u?” estampada nas costas. A tradução é algo como “Eu não me importo. E você?

PRISÃO Em gaiolas, sozinhas e com apenas um colchonete: as crianças vítimas de Trump (Crédito:Divulgação)

Quando idealizou a política de tolerância zero, o presidente americano queria pressionar o congresso americano a endurecer ainda mais as medidas contra a imigração. Entre elas, está a autorização para construir um muro na fronteira com o México, uma de suas promessas de campanha. Foi mais um tiro pela culatra. Será ainda mais difícil vencer a resistência internacional e, agora a interna, depois do que o mundo assistiu. A foto da menina hondurenha aos prantos enquanto sua mãe era revistada por um oficial americano na cidade de McAllen, no Texas, virou o símbolo da crueldade. Ainda bem que, mesmo em meio a tanta monstruosidade, surgiram exemplos de decência humana. Antar Davidson, filho de brasileiros nascido na Califórnia, pediu demissão do Southwest Key, um dos abrigos para onde crianças foram levadas, depois que recebeu a ordem da chefe para que avisasse a três irmãos prestes a serem separados que não podiam se abraçar. “Eu a olhei nos olhos e respondi que sentia muito, mas não poderia fazer o que ela me pediu. Se eu ficasse lá, continuariam a me pedir para fazer coisas que são imorais segundo os padrões globais, não apenas meus.”