Em manobra militar grotesca diante da Praça dos Três Poderes, o presidente Jair Bolsonaro encarna o papel de ditador bananeiro para intimidar parlamentares e fazer valer a sua vontade perversa de comandar o País com mão de ferro. Mas, com tanques e blindados soltando fumaça, ele causa estupefação na República, não convence a ninguém de seus intentos e sai ridicularizado mundialmente.

INDIGNAÇÃO Omar Aziz, presidente da CPI da Covid, diz que desfile “é ameaça de um fraco que sabe que perdeu” (Crédito:Leopoldo Silva)

Se em estados totalitários — como a Rússia de Josef Stálin e a China de Mao Tsé-Tung — as marchas militares eram incontestáveis manifestações de força e controle, no ridículo governo de Jair Bolsonaro elas são dignas de riso, mas nem por isso menos assustadoras. Em vez de produzir algo útil, o presidente tratou de montar um espetáculo patético na manhã de terça-feira, 10, com dezenas de blindados da Marinha enfileirados na Esplanada dos Ministérios, com parada no Palácio do Planalto, para tentar intimidar parlamentares e pressioná-los a aprovar a sua delirante PEC do voto impresso, que acabou derrotada. De uma forma inédita, Bolsonaro escancarou seus devaneios ditatoriais, no melhor estilo bananeiro, e causou constrangimento na República e em várias partes do mundo onde foi ridicularizado. Também deve ter deixado alguns déspotas, como o venezuelano Nicolás Maduro e o norte-coreano Kim Jong-un se mordendo de inveja pela ousadia do ato. Nenhuma democracia faz o que Bolsonaro fez, criar uma situação ameaçadora para influenciar uma decisão legislativa. É uma atitude vergonhosa que coloca o Brasil em um lugar que jamais deveria estar, com seu regime sendo testado e militares dispostos a entrar na brincadeira diabólica do presidente.

VERGONHA Presidente, comandantes das Forças Armadas
e ministros do governo assistem com ares de seriedade a errática parada militar que nunca deveria ter acontecido (Crédito:Marcos Correa)
Adriano Machado

Bolsonaro viu na tradicional Operação Formosa — exercício da Marinha do Brasil que acontece anualmente desde 1988 na cidade de Formosa, em Goiás, com as tropas partindo do Rio de Janeiro — uma oportunidade para fazer valer sua vontade na votação e passar a mensagem de que está pronto para o golpe, algo que também já é motivo de piada. Inventou um desvio de rota, passando por Brasília, que nunca tinha sido feito, a pretexto de receber o convite em papel para conhecer a operação, e armou seu circo de horrores com os olhos voltados para o Congresso. Apesar das Forças Armadas negarem que a atividade tenha sido uma forma de pressionar os parlamentares e alegarem que estava marcada com antecedência, só a ordem presidencial explica a mudança de caminho. Além do presidente, estavam na rampa do Palácio para receber o batalhão motorizado os comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Almeida Baptista Jr., e do Exército, general Paulo Sérgio Oliveira, além do ministro da Defesa, general Braga Netto. Outros chefes de poderes, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ou o ministro do STF, Luiz Fux, foram convidados, mas não apareceram. Houve uma dura crítica ao desfile, tratado como mais uma aberração do governo.

Lira considerou a realização do evento no dia da votação da PEC uma “trágica coincidência”.“Não sendo usual, num país que está polarizado do jeito que o Brasil está, com tantas versões, isso (o desfile) dá cabimento para que se especule algum tipo de pressão”, afirmou. “Essa passagem dos blindados para Formosa realmente apimenta esse momento.” Já Pacheco ressaltou que “absolutamente nada nem ninguém haverá de intimidar as prerrogativas do Parlamento”. Um dia antes da exibição de fraqueza política bolsonarista, dois partidos, Rede Sustentabilidade e PSOL, entraram com um mandado de segurança no STF para tentar impedir a circulação dos veículos militares pelo Plano Piloto de Brasília, alegando se tratar de uma “ameaça expressa e pública contra instituições, contra as eleições e contra a democracia”. O ministro Dias Toffoli negou o pedido. O presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), foi certeiro nas críticas ao desfile. “Todo homem público, além de cumprir funções constitucionais, deveria ter medo do ridículo, mas Bolsonaro não liga para nenhum desses limites, como fica claro nesta cena patética de hoje, que mostra apenas a ameaça de um fraco que perdeu”, afirmou.

“Um Parlamento ciente de suas responsabilidades é mais forte do que tanques nas ruas” Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara (Crédito:GILMAR FELIX)

Danos à imagem

A complacência com as vontades doentias de Bolsonaro cria um constrangimento para a alta cúpula militar. Em termos de apoio a qualquer tentativa tresloucada de golpe, o evento diz pouco. Mas mostra a relação de subserviência das Forças Armadas ao presidente e a disposição dos militares de entrar num jogo amalucado com viés totalitário. Tanques rodando na capital do País, ainda mais expelindo fumaça preta, nunca são bom sinal, mesmo quando denotam fraqueza política. Para o historiador José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), o mais surpreendente do episódio foi a participação da Marinha, que possui perfil mais técnico e profissional quando comparada ao Exército, por exemplo. “Desde o início do governo atual, seus comandantes não tinham se manifestado nem contra e nem a favor do governo”, disse Carvalho à ISTOÉ. Fora isso, o estudioso afirma que o dia 10 de agosto ficará marcado apenas “como uma tentativa ridícula de amedrontar os deputados”. Para o estudioso, que se dedica a analisar a participação dos militares na política brasileira, não há risco de um golpe militar por não haver unanimidade entre as Forças Armadas, que, segundo ele, “já perceberam o dano causado à sua imagem decorrente do uso que delas faz o presidente”.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência, definiu o desfile como “vexame nacional” e “infantilidade” por parte do presidente e foi além: “É hora de a Câmara e o Senado deixarem de serem muito tímidos e demonstrarem sua força”. O comandante do Exército, Paulo Nogueira de Oliveira, foi convocado para uma reunião ministerial no final da tarde de segunda-feira onde foi informado que precisaria presenciar a passagem dos blindados. Ele já havia marcado outra reunião para o mesmo horário, que acabou cancelando. A situação mostra que Bolsonaro acertou a passagem do desfile militar em Brasília de última hora, para sincronizá-la com a votação da PEC. Outra coisa que chamou atenção foi a baixa qualidade dos tanques e blindados da Marinha que desfilaram pela Esplanada dos Ministérios. Obsoletos, os equipamentos não lembram em nada os veículos usados atualmente por grandes potências militares. Os SK-105 Kürassier — blindados produzidos na Áustria a partir de 1970 — são usados no País pelo Corpo de Fuzileiros Navais, uma das forças da Marinha. Com canhão no topo, eles foram adquiridos na década de 1990.

A indisposição em participar das brincadeiras de Bolsonaro relembra outra situação na qual o Exército se viu em maus lençóis, ao não punir o general da ativa e ex-ministro da saúde, Eduardo Pazuello por comparecer a uma manisfestação política do presidente. Isso sem falar do antecessor de Nogueira no comando do Exército, o general Edson Pujol que por não apoiar atitudes como a de terça-feira, acabou sendo substituído em abril junto com os demais comandantes das Forças Armadas. O presidente parece acreditar que vive no passado ditatorial do país e todas essas manobras – desfiles, motociatas e substituições de comandantes – remetem ao general da ditadura Newton Cruz. Em abril de 1984, dois dias antes da votação de emenda Dante de Oliveira, que propunha a volta de eleições diretas, Cruz desfilou pomposamente em Brasília montado em um cavalo branco, acompanhado por tanques e seis mil militares. A emenda acabou, de fato, sendo derrubada pelo Congresso, por 22 votos. A vitória do general, no entanto, durou pouco. Já em janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente de forma indireta pela Câmara e as eleições diretas aconteceriam em 1989.

RESISTÊNCIA Durante parada militar, Senado aprova novo texto
da Lei de Segurança Nacional, dessa vez defendendo a democracia (Crédito:Marcos Oliveira)

Eleições perdidas

A proposta de emenda constitucional, a PEC do voto impresso, principal bandeira eleitoral do mandatário para 2022, foi costurada pelo presidente e seus apoiadores através da propagação mentirosa de que as eleições de 2018 foram fraudulentas. Bolsonaro não deixaria a provável derrota em 2022 passar batida e resolveu se agarrar a uma narrativa sem sentido. Seu sonho era garantir o voto impresso no medo, algo que felizmente não conseguiu. Apesar de não alcançar os 308 votos necessários para alterar a Constituição, a proposta teve 229 votos a favor e 219 contra. O resultado surpreendeu, pois os líderes da Câmara acreditavam que a grande maioria seria contra a volta do papel. Com o arquivamento da PEC, Bolsonaro agora terá uma desculpa na qual se apoiar caso perca as eleições — cenário cada dia mais provável. As simulações com presidenciáveis feitas até agora mostram que ele perde ou empata com a maioria dos possíveis candidatos ao pleito do ano que vem.

DERROTA O presidente da Câmara, Arthur Lira, engaveta a PEC do voto impresso: próxima eleição terá urnas eletrônicas (Crédito:Divulgação)

O desfile causou a indignação de diversos setores da sociedade. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, afirmou que “o espantoso e ridículo desfile de tanques na Esplanada demonstra a mediocridade de Bolsonaro”. O general da reserva Francisco Mamede de Brito Filho, que chegou a comandar o gabinete do Inep no governo Bolsonaro, fez crítica severa ao antigo chefe: “Triste espetáculo de subserviência e anacronismo”. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), disse não querer acreditar que a decisão seja uma tentativa de intimidação do Legislativo. Afirmou, porém, que se esse for o caso, “aprenderão a lição de que um parlamento independente e ciente das suas responsabilidades constitucionais é mais forte que tanques nas ruas”. Surpreendeu ainda mais a fala do vice-presidente da República, Hamilton Mourão. O general da reserva disse que o desfile foi apenas “uma homenagem ao presidente” e ironizou o aparato militar utilizado dizendo que a parada seria uma manobra “para receber maiores recursos”.

A imprensa internacional, no entanto, não deixou passar em branco o “Exército de Brancaleone” promovido por Bolsonaro. O jornal britânico The Guardian chamou o exercício militar de “desfile de República de Bananas de Bolsonaro”. O americano New York Times e o francês Le Monde também se manifestaram ridicularizando a demostração ou alfinetando o presidente. Para o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP), Guilherme Casarões, a impressão internacional do ocorrido foi muito ruim. “Deram até mais peso simbólico a esse desfile de tanques no exterior do que no Brasil. Por aqui estamos calejados com insinuações de Bolsonaro e suas pequenas ameaças. Muitas pessoas nem levaram a sério essa demonstração porque sabem que Bolsonaro cria crises como método de governança diariamente”, disse. Casarões afirma ainda que a imagem de tanques na rua gera desconfiança. “A imagem é de que o Brasil, antes considerado um País com grande potencial, foi rebaixado para uma republiqueta de terceiro mundo”, diz.

Os esforços de Bolsonaro para rebaixar os brasileiros, porém, foram mal sucedidos e, mais uma vez, ele fracassou em seus intentos. Além da derrota na PEC do voto impresso, o Senado aprovava a nova Lei de Segurança Nacional enquanto o circo de blindados acontecia nas ruas. Criada durante a ditadura, agora ganha modernização, punindo ataques contra a democracia e não mais perseguição a pessoas contrárias ao regime que esteja no poder. Os pontos da nova lei definem como crimes o golpe de estado, incitação de crime às Forças Armadas, comunicação enganosa em massa e interrupção do processo eleitoral. Apesar de depender da sanção presidencial, poucas coisas devem ser mexidas no texto, caso volte ao plenário. E, com sorte, a nova Lei de Segurança Nacional pode ser usada em breve contra o próprio Bolsonaro, por seus abusos de poder e veleidades golpistas.