Por mais teorizados que estejam os caminhos da mais simples e elementar tolerância parecem tantas vezes dificultados por gestos de magna violência simbólica. Ao olhar do “gringo” que percorre as ruas da cidade de Embu das Artes, na região metropolitana de S. Paulo, no Brasil, a diversidade, as cores nos seus mais variados matizes, os sons e os sabores, tudo nos remete para o são convívio. Contudo, ao entrar, quase ao ritmo do acaso, na exposição do Z’figueiredo, Os Orixás do Candomblé, tudo é desmontado.
Sem indicações, sem legendas, as grandes obras em betão aparecerem majestosas à minha frente. Cada uma, com uma dimensão próxima à altura de uma pessoa, representava um dos Orixás dessa religião afro-brasileira. A sua força não necessita, realmente, de legendas ou explicações. São peças que se autoexplicam numa vida que vai muito além da vontade e desejos do artista que as imaginou e as realizou há mais de 40 anos, nos finais dos anos setenta.
Num ambiente acolhedor, que dava a essas grandes peças um misto de ternura que pedia um toque, mas também nos afastava pela sua grandiosidade, as estátuas eram como que vivas apesar da gaiola de betão que lhes dava forma. Se de essência de entes religiosos ou espirituais se quisesse falar, então estas peças tocavam-nos como se um evento místico fossem. Confinadas à forma, elas extravasavam para quem as via.
Mas o olhar mais cuidadoso rapidamente nos confundia após esses primeiros momentos de espanto. Seria técnica ou desgaste do tempo? Seria propositado ou acaso devido a má qualidade do material? Todas as estátuas apresentavam falhas; partes partidas, até; símbolos que desapareceram num vazio que nos dizia que lá estavam, mas não os víamos. A deficiência dos acabamentos questionava-me, tanto mais que rapidamente vi, nas paredes, fotografias dessas mesmas peças, mas aí completas, perfeitas, sem essas marcas de vida que agora apresentavam.
E ao espanto sucedeu a inquietação. Não, não fora por terem estados longos anos expostas à chuva rigorosa e ao desgaste provocado pelos elementos que estas estátuas de Orixás estavam imperfeitas. Não, tanto mais que essas imperfeições pareciam mais intrínsecas às peças que a beleza lustrosa apresentada nas fotografias dos momentos primeiros das suas vidas. Essas imperfeições eram mais parte do que via que o ideário de as ter inteiras através das fotografias. A fotografia era mais mentira que as imperfeiçoes que ali se tornavam belas partes de entidades mais fortes e com uma história especial.
Criadas pelo então jovem artista luso-brasileiro José Figueiredo, e expostas nos inícios dos anos oitenta do século passado numa das praças centrais do Embu das Artes, os Orixás do Candomblé são um dos mais fortes símbolos da intolerância religiosa de um Brasil que se vende como acolhedor e integrador, mas onde a violência para com a diferença grassa de forma muitas vezes encapotada, mas violenta e constante.
Numa longa guerra de quatro décadas, que teve contornos de todos os géneros literários, as estátuas foram confiscadas, destruídas, vandalizadas e o seu autor ostracizado por uma sociedade que se apelidava de cidade das artes. À motivação inicial de cariz religioso, concretizada através de um clero que via com grande medo o passo de conceptualização e materialização dos Orixás, que levariam o Candomblé para um novo patamar de visibilidade e consistência, passando por um poder político incapaz de se afirmar perante os poderes conservadores, juntou-se uma comunidade artística que não conseguiu conviver com um dos seus que teve mais sucesso.
Em 2022, mais de quarenta anos depois da primeira exposição que trouxe ao de cima essa latente intolerância, as obras foram finalmente expostas, mas, mesmo assim, com um claro silêncio revelador do incómodo que ainda causam nas mentes tacanhas de uma sociedade que cada vez mais se fecha em crenças que excluem o outro, afirmando serem a única verdade.
Os Orixás do Candomblé são um monumento, não apenas no sentido estético, mas no que de violência representam através do que viveram. E estas estátuas são, hoje, muito mais que o eram em 1981, quando foram expostas em frente à igreja dos Jesuítas.
São assim, os momentos de canto de cisne: hoje, já sem jesuítas, em frente à mesma igreja podemos encontrar aos sábados e domingos artistas de rua que fazem estátuas-vivas com representação de demónios, mesmo em frente à porta principal. A grande diferença está no gosto e no bom-senso: há quarenta anos, eram belas estátuas de uma tradição local, forte e significativa; hoje, são mostrengos de mau gosto, feios, importados de imagéticas de cinematografia hollywoodesca de baixa categoria.
Para lá dos demónios popularizados pela indústria norte-americana, ficam os nossos, os do nosso quotidiano e os das nossas identidades. Se de identidades falamos, a das estátuas ficou robustecido com essas marcas na sua carne de cimento. Ganharam vida ao sair das mãos do artista, mas ganharam, ainda, força ao serem destruídas e expostas com essas dores que, não sendo de parto, deram à luz novas realidades.
Porque a história das tradições afro-brasileiras é essa luta constante pela sobrevivência, pela dignidade, como se ter um lugar numa cultura não fosse um direito, mas um crime. As obras do Z’figueiredo, expostas assim, imperfeitas porque violentadas, são a perfeição da imagem da intolerância. São um monumento a quem diz ter a verdade que, com estes gestos, se afirma como mentira.