A linguagem neutra está no centro de um debate político que promete ainda gerar muita polêmica e discussões acaloradas. Enquanto se desenvolve como uma demanda de pessoas que não se identificam com os gêneros masculino e feminino e é defendida com ardor por membros da comunidade LGBTIQIA+, a proposta vem sendo atacada por grupos conservadores e descartada por gramáticos. Em 15 estados e no Distrito Federal, deputados bolsonaristas se articulam para proibir o uso da linguagem neutra nas escolas públicas e privadas. Em Santa Catarina, um decreto do governador Carlos Moisés (PSL) já impede que seja adotada. Os opositores da mudança alegam que precisa ser garantido aos estudantes o direito ao aprendizado da língua portuguesa conforme a norma culta e as orientações legais de ensino definidas com base nas orientações nacionais de educação e pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), consolidado pela Academia Brasileira de Letras (ABL). O deputado Cabo Junio Amaral (PSL-MG) acusa as palavras sem gênero de “aberração linguística”.

O que está em discussão é a criação de vocábulos que não sejam masculinos ou femininos e que sejam usados para se referir a gays e lésbicas, por exemplo. Para isso já se propôs que o “a” e “o” fossem substituídos nos pronomes, substantivos e adjetivos neutros por“x” ou “@”, permitindo que além de “ele” ou “ela” houvesse um pronome pessoal “elx” ou “el@”. Outra ideia é que se utilize o “e” em pronomes indefinidos como “todos” ou “todas”, que ganhariam uma terceira forma, “todes”. Na semana passada, inclusive, o Museu da Língua Portuguesa (MLP), em São Paulo, que será reinaugurado sábado, 31, colocou mais lenha na fogueira do debate ao publicar um post em suas mídias sociais em que usava um “todes”. Apesar de reconhecer o questionamento da norma, a instituição justificou sua opção dizendo que “é um espaço para a discussão do idioma e suas variações incorporadas ao longo do tempo”. “Estamos sempre na perspectiva de valorizar os falares do cotidiano e observar como se relacionam com aspectos socioculturais, sem a pretensão de atuar como instância normalizadora”, informou em nota..

Impossibilidade normativa

A ABL, porém, que cuida da parte normativa, não tem a mesma visão, simplesmente porque a estrutura do português não suporta um gênero neutro, que existia no latim e persiste no alemão, mas desapareceu nas línguas neolatinas. “A gramática é como um edifício, você mexe na parte externa, que é a pintura, que são as palavras, mas não na estrutura, na parte interna”, afirma o filólogo Evanildo Bechara, ocupante da cadeira 33 da ABL e coordenador da 6ª edição do Volp, que incorporou, há uma semana, 1160 novos vocábulos na língua, incluindo muitos estrangeirismos, como home office e jihad, e conceitos como necropolítica e feminicídio. Numa língua sem gênero neutro, na qual o feminino e o masculino são sempre bem definidos, a transformação seria extremamente complexa e custosa, além de exigir flexões em vários elementos do sintagma. “Você não altera as regras de gênero, assim como não se muda as regras de formação de plural e de conjugação dos verbos”, diz Bechara. “Essa é uma mudança com a qual não é preciso se preocupar porque jamais será aceita totalmente pela comunidade de falantes”. Outro problema é que as soluções encontradas para expressar o gênero neutro atrapalham a leitura de pessoas com dislexia e a comunicação de deficientes auditivos.

A imediata inviabilidade gramatical não impede que grupo engajados desenvolvam seus símbolos e que a linguagem neutra vá encontrando seus próprios caminhos discursivos. Apesar de contrariar as normas, ela está associada a um debate importante sobre cidadania, inclusão e diversidade. Mesmo que não seja adotada de maneira generalizada, ela pode ser utilizada pragmaticamente e aos poucos por grupos em defesa de sua identidade. Embora corram em raias paralelas, tanto a ampliação do vocabulário pela ABL como a pressão política por uma mudança gramatical chamam atenção para o dinamismo da língua e para sua capacidade de renovação. Se o gênero neutro vai se impor ou não é outra história. O importante é manter a língua em transformação, ativa, vibrante, capaz de traduzir mudanças culturais e comportamentais na fala e na escrita dos brasileiros.