Durante a pandemia, a assistente de saúde Patricía Gomes, 39 anos, moradora na cidade do Porto, em Portugal, foi apresentada a dezenas de influenciadores digitais brasileiros. Entre eles, estava Luccas Neto, 29 anos e mais de 36 milhões de inscritos em seu canal no YouTube, o preferido do filho de Patrícia, Martim, de 10 anos. O garoto fez uma rápida transferência dos desenhos animados na televisão para o mundo da internet e dos jogos na quarentena. A matriarca notou pequenas diferenças no comportamento do filho que começaram a preocupá-la. Primeiro, o menino começou a conversar com um sotaque brasileiro — mas, segundo ela, isso não teria o menor problema, visto que ela tem amigos do Brasil. O segundo fez Patricía ficar alerta: o primogênito cumprimentava as pessoas com: “E aí, beleza?”; “Tudo bem, cara?”. Em seguida, Martim soltou um palavrão em alto e bom som dentro de casa. Mas o ponto alto para Patricía foi quando o filho perguntou: “Mamãe, o que é transar?”. “Levantei assustada do sofá, pois é uma expressão tipicamente brasileira. Aqui em Portugal nós não transamos, mas fazemos amor, há respeito e carinho”, explica. Indagado sobre onde o menino aprendeu a falar a expressão, ele afirmou que “ouviu de influenciadores brasileiros”. Patricía, colocou o filho em uma psicóloga com medo de que as perguntas pudessem ficar piores e bloqueou o acesso aos conteúdos brasileiros do garoto na internet. “Tive que explicar que esses youtubers não fazem nada da vida, vivem pela internet e ganham dinheiro por visualizações. É muita parvoíce (bobagem) e violência”, afirma Patricía preocupada.

LIBERADO Orlando e a mulher Sandra estimulam os filhos
a verem filmes e vídeos do Brasil: intercâmbio cultural (Crédito:Fabiano Cerchiari)

Mas não são todos os pais que pensam desse jeito e sentem aversão pela língua falada do Brasil, querendo seus filhos longe dela. A questão divide os portugueses e muitos não se incomodam com a nova língua da canalhada, o que em Portugal significa criançada. Perto da casa de Patricia e Martim, no mesmo distrito escolar, Orlando Prata, de 43 anos, e Sandra Ramos, de 44, assistem junto dos filhos Clara e Bernardo, de 13 e 10 anos, respectivamente, vídeos do Luccas Neto, películas de brasileiros jogando videogame de tiros, e estimulam as crianças a assistirem produções nacionais. Entre elas: Cidade de Deus e Tropa de Elite. “Nós aqui em Portugal falamos polícia, mas esses dias eu me peguei falando policial, igual brasileiro. Eu não acho estranho que meus filhos tenham este sotaque, pois eu também cresci vendo novelas brasileiras. Quantos portugueses adultos não falam “eu te amo”, em razão das novelas? É normal os miúdos se espelharem em algo ou alguém que é próximo deles, como os influenciadores”, explica. Orlando afirma não se incomodar com a violência dos conteúdos de videogames ou das próprias produções nacionais. “Ás vezes você está vendo um brasileiro matar um personagem no videogame e saí um palavrão, mas é instinto, é normal. Por ser um português com sotaque brasileiro, a gente nem percebe que é um palavrão”, afirma. Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que a mudança linguistica observada nas crianças portuguesas é algo normal, principalmente na era digital, quando há um entendimento coletivo da lingua e não há barreiras e limites entre as nações. “Só há espanto em pessoas que não prestam atenção nas transformações que o mundo presencia”, afirma José Manuel Diogo, diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira em Lisboa.

Não é de hoje que o português do Brasil influencia o de Portugal. Antes da internet, a TV e o rádio já cumpriam esse papel. Um marco dessa troca cultural foi a exibição, em 1977, da primeira novela brasileira em Portugal, Gabriela Cravo e Canela. O sucesso do folhetim em terras portuguesas refletiu-se em novas formas de comportamento e de relacionamento social, além de ditar moda – desde os penteados à escolha dos nomes e da linguagem usada. Frases como “moço bonito”, “sapato não, seu Nacib”, “já lhe dei meu cartão?” entraram nas conversas de bar dos portugueses. “Os brasileiros falam português, os lisboetas não falam exatamente como seus variantes, mas todas essas falas têm a mesma matriz: o português”, diz o filólogo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Evanildo Bechara. “É como se quisessem que a avó falasse a mesma língua do neto, Isso nunca vai acontecer, pois são gerações diferentes.” De qualquer forma, já é hora dos portugueses deixarem de tratar a língua falada no Brasil com preconceito colonial e sentimento de superioridade.