A lenta recuperação da foz do Rio Doce, 10 anos após Mariana

Parte da lama continua no fundo do rio e do mar e volta à tona de vez em quando. Alguns moradores se reinventaram, como ex-pescador que virou produtor de mel, mas outros seguem prejudicados

A lenta recuperação da foz do Rio Doce, 10 anos após Mariana

Em uma manhã ensolarada de julho, Clavelanio Peçanha, 66 anos, o seu Preto, navegava com um bote pela foz do Rio Doce, na comunidade de Regência Augusta, em Linhares (ES). Em vez de pescar, transportava pesquisadores que estudavam os impactos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), ocorrido há quase 10 anos. “Pra mim mudou tudo porque não posso mais pescar. Era o que eu mais gostava de fazer.”

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem da Samarco, uma empresa da brasielira Vale e da australiana BHP, causou 19 mortes e deixou duas pessoas desaparecidas. A lama de rejeitos de mineração desceu pelo Rio Doce, causando um desastre socioambiental pelo caminho. Após dezesseis dias, chegou à foz e ao mar, onde fica Regência.

Quase dez anos depois, os impactos ainda são sentidos na comunidade, conforme constatou a DW, que esteve na vila em meados de julho. Os pescadores precisaram parar de pescar. O turismo, que era impulsionado pelo surfe, ainda não se recuperou totalmente. Lá é comum ouvir variações desta frase: “Regência não voltou ao que era antes do desastre de Mariana.”

“Quando rompeu a barragem, todo mundo ficou esperando a lama chegar. Tinha gente chorando, dizendo que o rio acabou. Ficou dessa cor aqui”, disse seu Preto, apontando para uma boia laranja. “Ando no rio todo dia. A gente vê a lama que ficou no fundo. Você pisa e vê que ela é diferente.”

A percepção do pescador é referendada por um estudo. No último relatório, de junho do ano passado, o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), executado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) por meio da Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (Fest), mostrou que parte dos rejeitos permanecem no rio e no mar. E os efeitos negativos na biodiversidade permanecem.

Contaminação crônica

O desastre pode ser dividido em duas fases: aguda e crônica, explicou Fabian Sá, professor de oceanografia da Ufes e gestor do PMBA. A primeira causou, principalmente, um impacto físico, com grande mortandade de peixes por sufocamento.

A segunda é caracterizada pela contaminação contínua. “Hoje ainda estamos nesse período crônico, mesmo dez anos depois. Obviamente que, ao comparar com o início, houve uma melhora ambiental. Naturalmente o sistema vai se recompondo, tem toda uma resiliência ambiental. Mas voltou ao que era antes? Ainda não”, avaliou Sá.

Atualmente, os rejeitos, que os pesquisadores chamam de Material Ligado ao Desastre (MLD), ainda estão no rio, principalmente na hidrelétrica de Candonga, em Minas Gerais, e no fundo do mar, na região da foz do Rio Doce.

Quando chove forte em determinados locais do Rio Doce ou quando o mar fica agitado, o MLD ressurge, piorando a qualidade da água. “E piorando a qualidade da água, piora a vida dos animais”, explicou o professor da Ufes.

No início, os principais impactados foram os pequenos organismos. Mas, com o passar do tempo, os metais foram subindo na cadeia alimentar, contaminando outras espécies, como peixes, tartarugas e até botos.

Os pesquisadores encontraram, por exemplo, larvas de peixes com a cabeça deformada e a barriga rompida. Em tartarugas, observaram um aumento de fibropapilomatose, uma espécie de verruga causada por tumores.

É preciso levar em consideração também, destacou o professor, que o Rio Doce já era impactado antes do desastre. Ele sofria com esgoto e lixo das cidades e propriedades rurais ao longo do percurso, com a erosão e poluição de 300 anos de mineração.

Luto e conflitos

A comunidade de Regência já sofria com os danos ambientais antes da tragédia de Mariana. No dia do desastre, os moradores estavam na praça aguardando uma equipe de televisão para relatar os problemas com a qualidade da água, que era captada do rio, quando souberam do rompimento da barragem, contou o educador ambiental Carlos Sangália, 58 anos.

Quando a lama chegou à foz, os moradores a esperavam no porto, cercados por jornalistas e helicópteros que filmavam a cena. Uma das primeiras ações para tentar minimizar o impacto foi transferir os ninhos das tartarugas na praia, já que era época de desova – Regência é tão importante para esses animais que conta com uma base do projeto Tamar.

“Você perde um ente querido, fica externado na hora. Depois vem a aceitação ou não, depois vem o luto. A comunidade passou por todo esse processo”, descreveu Sangália. “Tem um problema ambiental e tem um problema social porque no mundo as questões se convergem.”

Em 2016, foi criada a Fundação Renova para efetuar as reparações e compensações. Segundo Sangália e diversos moradores, ocorreram muitos conflitos no processo. Há relatos de pessoas que se mudaram para a comunidade para receber indenizações e auxílios financeiros, enquanto muitos moradores não tiveram direito aos recursos.

A presidente da Associação do Comércio de Regência, Luzia da Silva Brumana, 53 anos, foi uma das pessoas que se sentiu injustiçada. Ela vendia marmitas, lanches, perfumes e joias e alugava quitinetes. “Fico indignada. Do lado da minha casa, uma mulher ganhou uma indenização de R$ 419 mil. Nem pousada ela tem, é uma casa abandonada”, afirma.

Busca por reparação

Segundo a Comissão de Atingidos de Regência, as mulheres foram discriminadas durante o processo de reparação. “A maior parte das indenizações e dos auxílios financeiros foram concedidos aos homens, e as mulheres foram colocadas nos cadastros como dependentes de seus companheiros ou de seus pais”, criticou a advogada Dyeniffr Correia de Oliveira, integrante da comissão.

No dia 11 de julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Linhares para anunciar o Programa de Transferência de Renda para os atingidos. Cerca de 22 mil pescadores e 13,5 mil agricultores, em municípios do Espírito Santo e de Minas Gerais, receberão pagamentos por quatro anos.

O programa faz parte do chamado Novo Acordo do Rio Doce. As mineradoras se comprometeram a repassar R$ 100 bilhões para os governos federal, estaduais e municipais para realizarem ações como reassentamentos, indenizações, recuperação da bacia e obras de infraestrutura nos próximos 20 anos.

A Comissão de Atingidos de Regência criticou o programa de transferência por não contemplar os comerciantes e artesãos – atualmente eles recebem auxílios financeiros. A DW questionou o governo sobre essa situação, mas não obteve resposta.

“A gente não teve a reparação justa que eles falaram que ia ter e não tem perspectiva que isso mude. A gente sabe que vai ter muitas lutas”, avaliou Oliveira. Além de um programa de transferência de renda voltado para comerciantes e artesãos, a comissão considera importante que os surfistas sejam reconhecidos como atingidos.

O direito das ondas e dos surfistas

“Depois dos peixes, quem mais está na água são os surfistas”, disse o surfista e contador Robson Barros da Rosa, 57 anos. Por isso, na sua visão, os praticantes desse esporte também deveriam ser reconhecidos como atingidos.

Pontinha, como é chamado, mudou-se para Regência nos anos 2000, onde montou com a esposa a Pontinha Surf House, espaço com camping, quartos para alugar e lanchonete. Criou um site, que ajudou a promover o turismo e suas ondas.

“Quando deu a lama não veio mais ninguém, não tinha como pagar as contas”, afirma. Atualmente o local está fechado. Pontinha conseguiu na Justiça, de forma liminar, o pagamento de um auxílio.

O surfe é tão importante para a vila que Regência tornou-se Reserva Nacional do Surfe. Suas ondas também são reconhecidas como sujeitos de direito por uma lei municipal, com base na ideia de que a natureza tem valor próprio e merece proteção jurídica.

Pontinha e seu filho, de 13 anos, continuam surfando, mas utilizam uma espécie de “protocolo de segurança” para evitar contaminação. Evitam surfar quando o rio está muito cheio, por exemplo, além de permanecerem pouco tempo no mar.

Reencontro com a natureza

Logo após o rompimento da barragem, a banda Pearl Jam veio ao Brasil e doou 100 mil dólares aos atingidos. Parte desses recursos chegou à Associação dos Meliponicultores do Espírito Santo, atividade de quem cria abelhas sem ferrão.

Tunay Souza Oliveira, de 31 anos, participou das oficinas da associação em busca de um recomeço. Como era pescador, chegou a pensar que sua vida tinha acabado. “A gente tinha um vínculo com a natureza. Eu nem percebia que era tão forte. A gente tá todo dia no rio, pega o peixe, joga tarrafa. E tudo isso traz uma conexão grande.”

Passados dez anos, Oliveira conseguiu se reinventar. Além de receber auxílio, vive do mel que produz e da visita de turistas, em um espaço verde e cheio de colmeias. Chamou seu produto de Watu, nome do Rio Doce dado pelos indígenas.

“Quis continuar vivendo do Rio Doce, porque vivia do Rio Doce antes. Por isso escolhi o nome Watu. Percebi que com as abelhas foi um reencontro com a natureza, porque as abelhas se conectam com a natureza o tempo todo.”

Vai pescar?

Uma das ações de reparação do novo acordo foi a criação, em julho, da Área de Proteção Ambiental da Foz do Rio Doce. O objetivo é fazer uma gestão sustentável da região e proteger a rica biodiversidade, composta por 255 espécies de aves, 47 de anfíbios, 54 répteis e 54 mamíferos.

Com o desastre, essa sustentabilidade da região está ameaçada. Prova disso é que, ao lado de um dos rios mais importantes do país, pescadores estão criando tilápias em tonéis, um peixe de origem africana.

A falta de atividade também afeta a saúde dos trabalhadores. “Estava acostumado a pescar o dia inteiro. Agora é comer, dormir e dar uma caminhada”, disse José Cordeiro Ribeiro, 63 anos, enquanto conversava com outro pescador ao lado de barcos parados. Ele precisou colocar um marcapasso no coração, e credita isso à falta da atividade.

Já seu Preto segue no rio, mas levando pesquisadores ou turistas com seu bote. “Quando for liberada a pesca, volto a pescar. Mas está difícil de acontecer. Ninguém está fazendo nada para limpar o Rio Doce por enquanto.”

A reportagem perguntou se ele acredita que vai voltar a pescar. “Rapaz, está meio difícil. Para limpar o rio vai uns 30, 40 anos, se alguém fizer alguma coisa. Estou com 66 anos”, disse, rindo. “Vai ser difícil.”