Antonio, de 43 anos, foi preso em 2001. Pegou 42 anos de cadeia por ter cometido cinco roubos consecutivos em um mesmo posto de gasolina. É dependente químico e atualmente está no presídio do Tremembé, no interior de São Paulo. Há três anos, ele tenta, sem sucesso, fazer uma cirurgia urológica. Sua mãe, Clara, diz que é impossível tirar o filho da cadeia para qualquer tratamento básico de saúde. Para a imensa maioria dos presos a vida é dura — e a saúde, um luxo quase inalcançável. Mas isso não é igual para todos. Antonio (o nome é fictício) ficou revoltado quando soube que o ex-médico Roger Abdelmassih, condenado a 181 anos, estava conseguindo prisão domiciliar, no começo de outubro do ano passado. Vira Abdelmassih andando pelo presídio e, aos seus olhos, o estado de saúde não parecia tão grave. Ele lembra ainda que no mesmo dia da saída de Abdelmassih outro detento morria sem atendimento nas celas do Tremembé.

O homem estava completamente inchado e um médico preso que o examinou disse que ele morreria sufocado pelo próprio líquido corporal. Não recebeu, porém, qualquer atenção. Só saiu do presídio quando já estava morto.

Tratamento diferenciado

Ainda que esteja mesmo sofrendo graves problemas de saúde, Abdelmassih, assim como o juiz Nicolau dos Santos Neto, o deputado federal Paulo Maluf ou o deputado estadual Jorge Picciani, pertence a uma casta de privilegiados que conseguem acesso a médicos e hospitais que não podem ser sequer sonhados pela população carcerária. Maluf, de 86 anos, deixou o presídio da Papuda, em Brasília, onde estava desde dezembro de 2017. Antes de ser solto foi internado com dores nas costas. Picciani deixou a cadeia de Benfica, no Rio de Janeiro, no mesmo dia de Maluf. Também foi para casa para fazer tratamentos pós-operatórios de um câncer na bexiga e na próstata. “Essa situação para nós é revoltante”, diz o padre Valdir Silveira, líder nacional da Pastoral Carcerária. “No mesmo dia que o deputado Paulo Maluf deixou a cadeia, eu estava numa unidade prisional de São Paulo e encontrei uma pessoa com um câncer no rosto sem qualquer atendimento ou possibilidade de sair da cadeia”.

O problema, segundo Silveira, não é o benefício dado a Maluf, mas o tratamento diferenciado. Pessoas doentes, idosas e com necessidade de cuidados especiais precisam realmente deixar a cadeia ou ter acesso facilitado aos hospitais penitenciários para enfrentar suas crises. Da maneira como o sistema carcerário funciona, porém, isso se tornou um privilégio. “Você não tem médico, não tem enfermaria, não tem transporte”, diz Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas Direitos Humanos. “E o preso comum com alguma doença só é tirado da cadeia em situações de vida ou morte”.

“A diferença fundamental entre os presos que conseguem benefícios e os que não conseguem está na advocacia, na qualidade da defesa” Marcos Fuchs, diretor da Conectas Direitos Humanos

A população das cadeias de São Paulo, segundo dados do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), referentes a junho de 2106, é de 240 mil pessoas, dos quais 75 mil são provisórios — no Brasil todo há 726 mil presos. Apenas 1% dos detentos paulistas, cerca de 2,4 mil, têm entre 60 e 70 anos e poucas centenas têm mais de 70 anos. No ano passado houve 484 mortes naturais nos presídios paulistas. Ataques cardíacos, AVCs, insuficiência renal e doenças que poderiam ser prevenidas e tratadas são as causas mais comuns. Segundo Fuchs, o aparato de saúde nos presídios é quase nulo: macas furadas, alguns remédios e um médico que faz atendimentos no máximo duas vezes por semana. Para quem necessita fazer hemodiálise, por exemplo, ficar preso é como ser condenado à morte. A grande restrição na cadeia para o tratamento de doenças crônicas é a falta de escolta para acompanhar os doentes até os hospitais. Também faltam vagas nos hospitais penitenciários. Em São Paulo há apenas 130 leitos. “A diferença fundamental entre os presos que conseguem benefícios e os que não conseguem está na advocacia, na qualidade da defesa”, afirma Fuchs. “Quem não tem defesa cumpre a pena com o máximo rigor da lei”.

“O poder judiciário é suscetível aos homens e mulheres influentes”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana (Condepe-SP). “Todos deveriam ser iguais perante a lei, mas na prática não é isso que acontece.” Alves se refere a uma tradição elitista no Brasil que privilegia homens e mulheres com poder político e econômico. “Sei de um preso paraplégico em estado terminal que não consegue o benefício da prisão domiciliar”, afirma. A prisão domiciliar, por sinal, é algo absolutamente excepcional no sistema penitenciário, seja para quem tem problemas de saúde ou por qualquer outro motivo. É quase uma ficção só possível para pessoas especiais. Ela está completamente fora do campo de possibilidades de condenados ou presos provisórios anônimos e defendidos com precariedade por seus advogados, diferentemente do que acontece com criminosos ilustres do colarinho branco, como os envolvidos na operação Lava Jato. É o caso do ex-ministro José Dirceu, do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, da mulher do ex-governador Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo, do publicitário João Santana, do empresário Eike Batista e od ex-gerente de serviços da Petrobras, Pedro Barusco. Todos eles conseguiram se livrar da prisão na cadeia ou ficaram presos por pouco tempo, mesmo sem necessidade de qualquer tratamento médico. Seus crimes são considerados menos graves do que os cometidos pelo presidiário Antonio, por exemplo, e suas penas são aliviadas. O que acontece no Brasil, basicamente, é que quem pode mais chora menos.

Colaborou André Vargas