Novo decano do STF, posto atribuído ao ministro mais longevo em atividade na Corte, Gilmar Mendes, 65, é um dos mais combativos juízes em relação aos equívocos que teriam sido praticados pela Lava Jato, e que levaram a erros processuais cometidos pelos magistrados do Paraná. Sem papas na língua, ele diz que a operação agia irregularmente, com práticas semelhantes às do crime organizado. “A Lava Jato despontou em Curitiba como se fosse um esquadrão da morte”, disse nesta entrevista exclusiva à ISTOÉ. Ele se mostrou indignado também com a gestão do governo Bolsonaro no combate à pandemia, responsabilizando o presidente e seu ex-ministro da Saúde pela tragédia que o País enfrenta. “Dificilmente vamos ter um gestor tão inepto e desastrado como foi o general Pazuello.” Segundo ele, muitas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse seguido a ciência e não recomendasse remédios ineficazes. Mendes elogiou ainda o trabalho da CPI da Covid e esquivou-se de repetir a expressão de que Bolsonaro foi genocida na Saúde, conforme disse em live à ISTOÉ no ano passado, o que gerou muita polêmica à época. “O desastre é inegável (gestão de Bolsonaro), mas agora esse assunto cabe à CPI debater junto à PGR.”

O senhor entende que Bolsonaro extrapolou nos ataques a ministros do STF?
O ministro Dias Toffoli, à época presidente do STF, deu uma resposta adequada em 2019, quando instalou o inquérito das fake news. Não é à toa que a abertura desse inquérito foi ratificada pelo tribunal. Esse inquérito deu a base para as reações que tivemos e que permitiram uma defesa adequada da Corte e da democracia. Acho que se tentou usar a Corte como bode expiatório dessa crise e dar a ela um problema de má governança a ser resolvido. O desastre da política sanitária do governo nada teve a ver com o tribunal. O STF disse sempre que um sistema tripartite de União, estados e municípios deveria ser coordenado. Mas se a União não atuava, estados e municípios não poderiam ficar impedidos de atuar. Tenho a impressão de que, no jogo político, se estava atrás de um bode expiatório e o STF, talvez, fosse um vistoso bode para explicar a falência de uma política pública negacionista.

Ainda há risco de golpe no Brasil?
Não me parece. Isto está bastante fora do contexto da realidade. Vocês da imprensa falam em golpe. Você já viveu a censura prévia, certo. Vai se estabelecer a censura como houve nos anos de 1970? Vai se restringir o habeas corpus? Vai se fechar o Congresso? Vai se fechar o STF com um soldado e um cabo? Vai se substituir os governadores eleitos? O País é muito complexo. Já é difícil administrar o Brasil dentro das regras democráticas. Me parece que isso não faz nenhum sentido a não ser para aterrorizar as pessoas. Essas pessoas que gritam nas ruas “saudade da ditadura” ou “no regime militar não tinha corrupção” não têm noção histórica do que foi o regime militar.

No Fórum Jurídico de Lisboa, que será promovido em Portugal no mês que vem pelo IDP, autoridades de todo o mundo discutirão os graves problemas que a pandemia causou nos campos social e econômico?
Discutiremos todos os aspectos dessa tragédia. Como sabemos, o mundo também está discutindo hoje uma perspectiva de reconstrução com verbas e esforços especiais, tanto na Europa como nos EUA. Certamente, haverá um debate sobre o que acontece aqui no Brasil, em relação à reconstrução. O que entendo ter sido grave no Brasil foi a confusão em termos de gestão, dos desacertos e da falta de coordenação. Esse “bate-ca beça” entre a administração federal e as demais administrações levou a inúmeros conflitos e, ao fim, resultou em mortes. Afinal, causou perplexidade o fato de alguém recomendar um tipo de conduta e outro propor um tratamento que depois se provou ineficaz. É óbvio que isso teria consequências.

Mortes poderiam ter sido evitadas?
Poderíamos ter reduzido em muito o impacto da pandemia. Depois, havia essa disputa que ficou muito politizada e até partidarizada em torno do dilema: a economia ou a saúde. E vimos que se não se resolve o problema da saúde e não se resolve o problema da economia de forma isolada. Esse também foi um aprendizado. Felizmente, temos a vacina, avançamos e a população está muito consciente. Hoje, estamos com 100 milhões de vacinados, portanto, metade da população está imunizada. Avançou-se nisso e acredito que conseguimos reduzir os impactos da doença e na economia.

O maior erro foi ter recomendado remédios ineficazes?
De fato, houve essa politização no Ministério da Saúde. Quatro ministros em menos de três anos, com todos esses desacertos e uma dificuldade imensa de gestão. Felizmente, o SUS funcionou a despeito da cabeça do sistema estar falhando. O sistema SUS, como todos sabem, é um sistema tripartite em que se tem uma integração da União, estados e municípios. E a União, que deveria ser o órgão de coordenação, acabou sendo esse ente vacilante e perplexo.

O senhor acredita que Bolsonaro tenha responsabilidade pessoal nessa tragédia?
Não vou fazer esse tipo de análise. O Ministério Público é que deve fazer juízo sobre os subsídios e eventualmente abrir as investigações. Acho que isso tudo contribuirá para uma eventual análise de responsabilidade judicial e eventual responsabilização política, mas também tem a avaliação histórica. Considerando todas as perplexidades que tivemos, um verdadeiro caos, é impossível não nos referirmos à gestão do general Pazuello. Dificilmente vamos ter um gestor tão inepto, tão desastrado como foi o general da área da Saúde.

Bolsonaro teve participação nessa gestão inepta?
Talvez o Poder Executivo Federal tenha carregado na politização de temas que, ao fim e ao cabo, eram de saúde pública e exigiam boa governança. Ao mesmo tempo, em todas as esferas, fez falta a atuação de gestores responsáveis. Qualquer pessoa com algum grau de discernimento que assumisse uma função de peso e que recebesse uma ordem que violasse os princípios do sistema deveria fazer um juízo crítico sobre as determinações ou eventualmente pedir para sair.

O senhor foi o primeiro a trazer o tema do genocídio do governo Bolsonaro na pandemia à discussão. Concorda com isso hoje?
Acho que a CPI vai colocar o tema em debate junto à PGR. De imediato, o desastre é inegável, já que tivemos um quadro de mortalidade que poderia ter sido reduzido se nós tivéssemos tido gestão adequada do setor e não tivéssemos vendido ilusões com placebos e cloroquina. Acabamos até esquecendo, mas veja o quadro da tragédia de Manaus, onde faltou oxigênio e as pessoas morreram asfixiadas. Lá, havia uma equipe do Ministério da Saúde levando esse tratamento precoce. Tudo isso foi lamentável.

O que achou dos crimes que a CPI imputa ao presidente?
Não vou emitir juízo sobre isso. Até porque daqui a pouco o tema pode parar no Supremo. O destino do relatório é exatamente o Ministério Público, que vai fazer a avaliação e também determinar outras investigações que autonomamente estão sendo desenvolvidas pela PGR. Estou mais interessado, nesse momento, é com as lições que a gente pode tirar dessa crise. O que fazer institucionalmente para que isso não se repita?

O senhor acredita que a CPI pode acabar em pizza?
Não vejo que isso venha a ocorrer. Até porque, ela já produziu resultados. O impacto que ela teve na comunidade, as verificações que foram feitas e as revelações que estão sendo sistematizadas não nos levam a crer que nada acontecerá. A CPI sistematizou o que aconteceu e qualquer estudioso que queira saber como foi esse período trágico poderá se debruçar sobre o relatório da CPI. Independentemente de punição, acho que a CPI já produziu resultados. A comissão contribuiu para que os esforços da vacinação não fossem descontinuados.

A PEC que tratava das mudanças do MP, rejeitada na Câmara, poderia dar poder para os políticos interferirem nas investigações?
Não vejo que isso estivesse em jogo. Não acredito que alguém pretenda coibir a autonomia do MP. O que estava se discutindo é a funcionalidade ou desfuncionalidade do Conselho do MP. Quando foi criado, o CNMP era para ser um órgão de controle externo, que tivesse representantes da sociedade e do Parlamento para se ter uma avaliação e, eventualmente, corrigir excessos do MP. O Estado de Direito não comporta soberanos e os dados que estão sendo revelados é que esse órgão, sobretudo, tem se revelado pouco efetivo.

Dizem que o projeto de revisão do CNMP teria sido criado por sua causa. Deltan Dallagnol deve ser punido?
Nada a ver, nada disso. A Lava Jato despontou em Curitiba como se fosse um esquadrão da morte. Um tipo de justiçamento. E aqueles que pudessem obstaculizá-lo eram atingidos. Havia um conluio com a Receita Federal, com a PF e coisas do tipo que foram amplamente reveladas. O meu caso é irrelevante. Eles decidiram instaurar um procedimento de investigação junto à Receita. O chefe dessa operação era um consultor da Lava Jato do Rio, Marcos Aurélio Carnal, que foi preso por corrupção e que estava achacando. Então, se nota que isso, na verdade, estava muito próximo de um esquadrão da morte.

Como assim?
Lembre que o esquadrão da morte tinha funções decantadas de repressão ao crime, mas se aproveitava disso e fazia dinheiro. Vimos que o Moro, quando veio para o Ministério da Justiça, trouxe como chefe do Coaf o Roberto Leonel, que era o chefe da Receita em Curitiba e que, aparentemente, fazia essas investigações irregulares. Quando a procuradora-geral, Raquel Dodge, quis encerrar a tal Fundação Dallagnol, ela sabia o que estava fazendo. Agora, ao encerrar a força-tarefa, o procurador Aras certamente organizou uma fuga para frente. Não quis fazer essa investigação. É melhor que isso se encerre.

A demora do Senado para marcar a sabatina de André Mendonça enfraquece o STF?
É uma questão política e tem a ver com a crise entre o Executivo e o Senado. Não vejo como isto reflita no Supremo. Entendo que essa questão política precisa ser decifrada nessa perspectiva. O STF não é protagonista dessa crise.

Acha que a questão religiosa está dificultando a sabatina?
Tenho a impressão de que Mendonça reúne os predicados. Apresentou os seus títulos, atuou na AdvocaciaGeral da União e tem qualificações acadêmicas. Não vejo por que o debate deva ser levado para esse campo religioso. Até onde os meus olhos são capazes de alcançar, o que eu vejo é uma crise de falta de articulação política, que é inédita.