Tal qual Diógenes com a sua lanterna a vagar pelas ruas em busca de um homem honesto, o ex-ministro, ex-deputado e decano da economia brasileira, Antônio Delfim Netto, há décadas orbita o poder e o alerta sobre os caminhos certeiros na direção do crescimento sustentável. Não é para menos. Do alto de uma cátedra que enfeixa desde passagens pelo Ministério da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura a expedições intelectuais por territórios do mundo como embaixador na França, o fecundo e mais brilhante economista de todos os que passaram pelo poder na história republicana sabe do que fala. Foi dele o mérito do chamado “milagre” do desenvolvimento acelerado entre os anos de 1968 a 1973. Dele, é também aquela que ficou conhecida como a “inflação do chuchu” — por sua mecânica atrelada ao preço da hortaliça. Delfim, o camaleão de mil faces, vestiu com naturalidade o fardão da ditadura, sem nunca ter sido militar, e embalou-se com as deliberações do AI-5. Mas soube se esgueirar pela borda dos debates de esquerda, envolvendo-se e dando conselhos a Lula, Dilma e, quiçá, Fernando Henrique, para fazer brotar o Plano Real. Delfim é vulcânico em suas impressões e voraz nas críticas. Parrudo e espaçoso em todos os sentidos, garantiu assento cativo na vaga de conselheiro informal de praticamente todos os governantes — militares ou civis, à esquerda e à direita, sem preconceitos ideológicos, de credo ou origem. Ao longo de sua trajetória, a paternidade de uma ideia – teve outras, mas essa certamente o guindou ao posto de guru — fez com que todos compreendessem a importância de deixar crescer o bolo para depois dividi-lo.

“No setor público, o ajuste fiscal caminha razoavelmente. Seguramente estamos na direção do controle da relação entre dívida pública e PIB, importante para dar uma perspectiva melhor para o futuro”

Delfim foi e segue sendo um atávico defensor do crescimento econômico, como saída para todos os males. É um otimista por convicção e princípio. Têm seus diagnósticos e modestamente expressa sugestões que calçam feito luvas no complexo e barroco tabuleiro de disputas das propostas hoje em análise. O verdadeiro czar da economia não anseia os holofotes. Ao contrário. Prefere a discrição do seu escritório no sofisticado bairro do Pacaembu, em São Paulo, de onde, tradicionalmente, dia após dia, aboleta-se em sua poltrona para registrar ensinamentos. Exibe-os aos interessados quando solicitado. Jamais toma a iniciativa. Os artigos que publica são alvo de profunda imersão e pesquisa para as conclusões. Nos últimos dias, da mesma maneira que passou os mais de 70 anos anteriores, tem se dedicado a destravar problemas complexos de áreas tão distintas como educação e infraestrutura. Seus diagnósticos são evocativos de uma singular precisão sobre a doutrina cíclica das crises apocalípticas. O Brasil estaria ao final e ao cabo de uma delas, prestes a decolar de novo — e, agora, robustecido por uma musculatura de experiência que os tempos e desafios passados lhe proporcionaram. O conselheiro mais influente e onipresente dos mandatários do País, desde a era militar, está fazendo alertas estratégicos para as batalhas que se apresentam. Vai costurando uma teia de teorias que, juntas, podem elucidar a complexa equação que mistura geração de empregos, resgate da indústria, incremento das exportações, estímulo aos investimentos e garantia de um mercado de ações ativo para firmar o chamado ciclo positivo da economia.

Aos 91 anos, ele continua um otimista incorrigível. Acha que as mudanças propostas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, são mais ambiciosas “do que aquelas que qualquer um tenha imaginado até hoje”. As mudanças estruturais que Guedes está propondo dentro do plano “Mais Brasil” têm o condão de organizar a economia. Para o ex-ministro, que já foi considerado o czar da economia brasileira nos anos áureos do milagre econômico — por mais que ele tenha acontecido durante os anos de chumbo da ditadura militar —, as transformações propostas por Guedes comportam “ambições” maiores em relação às que ele próprio sugeriu no programa “Ponte para o Futuro” posto em prática pelo ex-presidente Michel Temer em 2016 como forma de recuperar a economia do desastre deixado por Dilma Rousseff. As opiniões de Delfim, portanto, têm um peso exponencial, já que ele, quando foi ministro da Fazenda na década de 70, levou a economia brasileira a crescer em ritmo chinês, de 11% ao ano. Delfim acredita que o atual governo, no entanto, em que pese os bons técnicos disponíveis na equipe econômica, não conseguirá repetir os resultados do milagre.“O mundo era outro, as circunstâncias eram bem diferentes”, ressalva. O mago da economia entende que se o País crescer hoje a uma taxa de 4%, “já estaremos avançando tanto quando naquele momento”. É o que disse ele em entrevista exclusiva à ISTOÉ na segunda-feira 18.

Em seu luxuoso escritório pisaram ministros da Fazenda de quase todos os governos desde o final da década de 50. Os conselhos de Delfim foram fundamentais, tanto que Lula recomendou que Dilma, ao sucedê-lo, se aproximasse mais de Delfim e ouvisse suas propostas para tirar o País da crise. A ex-presidente, arrogante, claro que não o escutou. Em 2016 Delfim e outros economistas ajudaram o MDB a formular o “Ponte para o Futuro”, do então vice-presidente Michel Temer, com propostas profundas para retomar o equilíbrio fiscal. Enquanto Dilma sofreu o processo de impeachment, Temer executou o plano. De imediato, o ministro da Fazenda da época, Henrique Meirelles, obteve a aprovação do limite do teto de gastos, o que estabilizou as despesas públicas. Uma política que está sendo seguida também pela equipe de Paulo Guedes.

ÁS DA ECONOMIA Em sete décadas de vida pública, Delfim Netto deu conselhos à maioria dos governantes, desde os militares, de direita, aos petistas, de esquerda (Crédito:Marco Ankosqui)

Propostas ambiciosas

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Delfim entende que a política executada pelo atual ministro da Economia, obedecendo os fundamentos do corte dos gastos públicos lançados pelo governo anterior, já está surtindo efeitos positivos. “No setor público, o ajuste fiscal caminha razoavelmente”, diz ele, que continua mais ativo do que nunca, não apenas como professor emérito da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da Universidade de São Paulo (USP), mas também como consultor de grandes empresas. Para ele, a redução da taxa de juros, que atinge o mais baixo patamar da história (5% ao ano), pode atrair novos investidores. “Somos um País com estabilidade, com projetos que têm taxas reais de retorno de 7% a 8% ao ano, por 25 ou 30 anos, quando o mundo está com taxas de juros negativas”.

Valendo-se de sua expertise na atração de recursos no exterior, o ex-ministro recomenda que o atual governo negocie melhor com o Congresso os avanços propostos por Guedes e fixe regras para que flua melhor a atração de investimentos por meio das privatizações, leilões e projetos de parcerias-público-privadas — fundamentais para o crescimento da economia. Ele sugere a criação de um “fast-track”, uma lei delegada na qual o Congresso entregue ao Poder Executivo as condições de produzir esse processo de atração de capitais. “O fast-track seria uma via rápida a ser aprovada pelo Congresso para conceder ao governo mais poderes para a venda de estatais”. Delfim só teme que isso não seja possível porque boa parte da classe política “guarda muito medo de que o governo Bolsonaro tenha êxito e assim se reeleja em 2022”. Delfim compreende que os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, tenham dado grande contribuição para a aprovação da Reforma da Previdência. Lembra, porém, que o País precisa muito mais do que isso. “O investimento está esmagado. Para 2020, ele será de 0,3% do PIB, quando o ideal seria chegarmos a um investimento de 4% ou 5% ”. Nesse ritmo, diz Delfim, “o Brasil está em pleno subdesenvolvimento acelerado.”

INFLUENTE No Congresso, Delfim permaneceu mais de 20 anos como deputado federal, tendo calorosas discussões com Lula na Constituinte de 88 (Crédito:Divulgação)

O guru acredita que a equipe econômica saberá contornar os problemas provocados por esse baixo nível de investimento. Delfim alimenta entusiasmo especial pela “equipe técnica” do atual governo, na qual inclui, além de Guedes, os ministros Tarcísio Freitas (Infraestrutura) e Tereza Cristina (Agricultura), classificados por ele como “espetaculares”. O ex-ministro aposta que se o presidente Bolsonaro deixar essa turma trabalhar, tudo irá melhor, “pois eles representam um programa de modernização, que pode fazer a diferença e significar uma inflexão na história do País”. Adverte, porém, que eles precisam ter suporte do Congresso. O professor tem receio que essa pauta inovadora esbarre na agenda de costumes de Bolsonaro, composta por temas carregados de retrocessos ideológicos, como foi o caso recente da proposta feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro. O filho 03 do presidente disse que se o Brasil tivesse conflagrações como as que ocorrem no Chile, poderíamos ter de volta o AI-5, que, no regime militar, fechou o Congresso, cassou políticos, prendeu e torturou opositores do governo. Delfim chegou a ser signatário do AI-5 em 1968, mas retomá-lo hoje, segundo afirma, “seria uma tolice monumental”. A falta de habilidade política do presidente e seus filhos, portanto, é nociva para o clima de estabilidade política e econômica. Para ele, “o presidente nega a coisa mais fundamental de uma sociedade civilizada, que é a negociação política e está confundindo negociação com corrupção”.

A BOA TEORIA Quando foi ministro de Médici, Delfim disse a célebre frase: “Precisamos fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” (Crédito:Reprodução)

“O presidente nega a coisa mais fundamental de uma sociedade civilizada, que é a negociação política. Está confundindo negociação com corrupção, igno rando que a política, no sentido republicano, é a coisa mais natural que existe”

Nasce uma estrela

O protagonismo de Delfim começou no final dos anos 1950, no governo do Estado de São Paulo, e cresceu na década seguinte, quando integrou um órgão de assessoria à política econômica do governo do general Humberto Castelo Branco (1964-1967). Mas foi com a posse do general Artur da Costa e Silva na Presidência em 1967 que a estrela de Delfim começou a brilhar. Foi nomeado ministro da Fazenda, cargo onde permaneceu até 1974, já no governo do general Emílio Garrastazu Médici, quando se consolidou como o arquiteto do milagre econômico. A memória do Brasil potência, que ele deixou, levou-o de volta ao governo do general João Figueiredo (1980-1984). Primeiro, ocupou a pasta da Agricultura e, depois, a do Planejamento, quando retomou o comando da economia. Na redemocratização, no final dos anos 80, Delfim se tornou deputado federal e participou da Assembleia Nacional Constituinte, onde teve peso muito grande na formulação da atual Constituição. Exerceu uma atuação parlamentar intensa até 2007. Autor de diversos livros, ele é leitor voraz e ficou famoso por comprar obras em baciadas no exterior. Em 2014, doou seus mais de 200 mil volumes para a FEA, onde ainda dá aulas eventualmente. Em mais de 70 anos de carreira pública, muita coisa mudou na sua vida, especialmente a mobilidade, que hoje lhe falta um pouco. Mas o raciocínio brilhante, o bom humor e o otimismo crônico, que continuam ágeis e intactos.

ENTREVISTA EXCLUSIVA
O ex-ministro Delfim Netto acredita que Paulo Guedes está propondo mudanças estruturais na economia, de forma mais “profunda” do que se imaginava

Qual é a sua avaliação do governo Bolsonaro?
Vejo uma clara divisão. Tem uma área escura, que tem preconceitos identitários e cuida de problemas de costume. Não me agrada. Mas tem uma outra área técnica, com gente altamente competente, que é realmente espetacular: Tarcísio Freitas (Infraestrutura), Tereza Cristina (Agricultura) e Paulo Guedes (Economia). Representam uma proposta de mudança do Brasil. Bolsonaro ajuda deixando-os trabalhar, e atrapalha com as questões da outra área. Esses nomes representam um programa de modernização, que faz diferença e pode significar uma inflexão na história do País, se tiver suporte no Congresso.

O senhor concorda com o plano Mais Brasil do ministro Paulo Guedes?
É uma tentativa de se mudar a estrutura administrativa do Brasil. O grosso do excedente produtivo é apropriado por uma casta de funcionários públicos, em um sistema que se autorreproduz. Está no Legislativo, no Judiciário e no Executivo. Esse excedente precisa ser reconduzido para a sociedade, e não para um grupo que detenha o poder. Isso é fundamental.

Esse programa pode trazer o crescimento de volta?
Há alguns sinais de que as coisas se recuperam. No setor público, o ajuste fiscal caminha razoavelmente. Seguramente estamos indo para um controle da relação entre dívida pública e PIB, que é importante para dar uma perspectiva melhor para o futuro. Estamos com uma baixa da taxa de juros, que eu acho definitiva. Desde a gestão do Ilan Goldfajn, o Banco Central colocou em marcha um programa de modernização do sistema financeiro que o Brasil estava necessitando. Hoje há um aumento de competitividade enorme com as fintechs. Tudo isso promete. Se houver crescimento, provavelmente não vai faltar o suporte monetário.

O que pode atrapalhar?
Minha única preocupação são as posições extremas de Bolsonaro. Ele nega a coisa mais fundamental de uma sociedade civilizada que é a negociação política. Confunde isso com corrupção, ignorando o fato de que o exercício político republicano é a coisa mais natural em todos os governos em que não há maioria no Congresso. O presidente tem 10% do Congresso. Portanto, seria natural que escolhesse parceiros, construísse um programa comum e distribuísse o poder com eles.


A economia está no caminho correto?
Algumas propostas são boas, outras são menos boas, mas em geral estão na direção certa. Há uma falta de demanda efetiva. Em condições normais, você mobilizaria alguns recursos e o governo investiria no programa de infraestrutura. Hoje isso é impossível. O País está com um nível de dívida de 80% do PIB, buscando o equilíbrio fiscal. É preciso mobilizar a oferta, os projetos de infraestrutura e as parcerias público-privadas, com financiamento interno ou externo, pois o governo não tem condições de financiar. Vamos corrigir a deficiência de demanda pelo aumento da oferta. À medida em que há aumento da oferta com investimentos, eles se multiplicam, elevam o nível de renda e emprego, e suprem a deficiência de demanda. Precisamos de um mecanismo que se autoalimente com recursos que vêm de fora. Esse é o esquema fora do tradicional “keynesianismo hidráulico”, que não funciona.

Mas isso não está funcionando?
Para isso precisamos de um fast-track. Tenho insistido em uma lei delegada. Ou seja, o Congresso, por um período determinado e sob seu controle, entrega para o Executivo as condições de produzir as privatizações, os leilões de investimentos e as parcerias público-privadas. É para o aumento da oferta, paradoxalmente, aumentar a demanda.

O fast-track ainda não foi enviado ao Congresso.
Há um problema sério. Honestamente, acho que uma boa parte do sistema político tem muito medo de que Bolsonaro tenha êxito. Porque assim ele se reelegeria. O fast-track é o maior risco para o governo Bolsonaro dar certo. Isso tem implicações políticas muito sérias.

Por que o governo não consegue propor esse projeto?
Há uma objeção política. O Congresso tem hoje um protagonismo muito interessante com o Rodrigo Maia e com o Davi Alcolumbre. Eles assumiram o controle da Reforma da Previdência. Mas, ainda que ela tenha feito tanto barulho, representa muito pouco. Temos um sistema em que as despesas correntes são endógenas. Aumentam independentemente do que acontecer. Como há um teto, o investimento foi sendo esmagado. Chegamos ao ponto em que o investimento previsto para 2020 é de 0,3% do PIB. Não poderia ser inferior a 4% ou 5% do PIB. Faz anos que o investimento público é menor do que a depreciação da infraestrutura. O Brasil está em pleno subdesenvolvimento acelerado.

Fatores externos ameaçam a retomada econômica?
A perspectiva não é das melhores com o Trump, de um lado, e o Brexit, do outro. Os EUA entregaram a Europa ao Putin. Cometeram equívocos na Ásia, levando uma surra dos chineses, e abandonaram os seus parceiros. Há um mundo instável do ponto de vista geopolítico, como é o caso do Oriente Médio. O Brasil está fora disso, em um mundo de paz. Já representamos uma grande oportunidade para o investidor. Somos um país com estabilidade, com projetos que têm taxas reais de retorno de 7% a 8% ao ano, por 25 a 30 anos, quando o mundo está com taxas de juros negativas. Por isso tenho a esperança de que o Brasil realmente recuperará o crescimento, se tiver acuidade e inteligência. Ninguém está falando em crescimento como o que já tivemos, mas de 3% ou 4%.

As taxas de crescimento que aconteceram na época em que o senhor estava à frente da economia voltarão?
Não, era um outro mundo. As circunstâncias eram diferentes. A população crescia 3,5% ao ano. O crescimento de 7% era um crescimento per capita de 3,5%. Se crescermos 4%, estaremos avançando tanto quanto naquele momento.

O ministro Paulo Guedes está se inspirando no programa econômico de Temer, para o qual o senhor contribuiu?
Os dois programas convergem. Acho que a ambição do Paulo Guedes é muito maior. Ele está propondo uma mudança estrutural na organização da economia brasileira. É muito mais profundo do que qualquer um tinha imaginado até hoje. Eu diria até que é necessário. Como estamos em um Estado Democrático de Direito, isso precisa ser negociado com a sociedade.

O AI-5 voltou ao noticiário com a menção de Eduardo Bolsonaro à possível utilização do instrumento novamente. Há espaço para se discutir uma medida semelhante?
Isso é uma tolice monumental. Não se volta ao passado. Se voltar, é uma farsa. É incompreensível que alguém que seja político proponha uma tolice como essa. No fundo, é porque não entendeu nada da história. É um marginal da história.


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