CAUTELA Para diretorda OMS, Tedros Adhanom, doença continua sendo grande ameaça (Crédito:Denis Balibous)

Em mais uma demonstração de falta de planejamento e contrariando recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o governo brasileiro declarou o fim do estado de emergência em saúde pública de importância nacional (Espin), que vigorava no País desde 4 de fevereiro de 2020. Embora o ministro Marcelo Queiroga tenha informado que nenhuma política pública seria interrompida imediatamente, o término repentino da emergência sanitária gera incerteza sobre o futuro, pois envolve na prática a suspensão de medidas como o controle de viajantes, a liberação de recursos para estados e municípios, realização de compras sem licitação e a autorização de uso emergencial de vacinas e medicamentos sem que se saiba ainda exatamente como a doença evoluirá daqui para frente. Para o Comitê de Emergência da OMS, ela ainda é uma grave ameaça que continua a afetar negativamente as populações de todo o mundo e seu combate exige uma resposta internacional coordenada. Por aqui, porém, as autoridades federais seguem um caminho próprio e abaixam a guarda. O governo faz politicagem e tenta criar uma agenda positiva em relação à pandemia antes da hora para agradar potenciais eleitores na campanha presidencial que se inicia.

“Ainda é cedo para cantar vitória. Há muitos países com baixa cobertura vacinal e alta transmissão” Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS

“Na verdade, a gente percebe que o governo nunca considerou a pandemia como uma emergência. Desde o início faltou testagem, houve a defesa de tratamentos sem comprovação científica e atraso na chegada da vacina”, diz o médico Alexandre Naime, professor da Unesp e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “Se antes já havia total desatenção, agora, sem estado de emergência, ficará tudo ainda pior e sem controle.” Para o médico, embora o cenário epidemiológico nacional esteja mais favorável neste momento, com queda no contágio e nas mortes por causa da vacinação, as regras de isolamento e quarentena deveriam ser revistas gradualmente e não de maneira abrupta. Em vez disso, o governo adotou um discurso retórico para tentar normalizar uma situação que continua sendo séria, com cerca de 100 óbitos registrados diariamente. “A gente não vê, por exemplo, uma campanha para a 3ª e 4ª dose, e dá para perceber que a falta de coordenação, que já era crônica, vai piorar ainda mais”, afirma Naime. “Nenhum outro país ainda fez esse rebaixamento, que contraria as recomendações da OMS. É uma jogada de marketing, já que as eleições estão chegando.”

O que se vê é o governo abrindo mão de uma estratégia pós-pandemia em prol de interesses políticos. Para os bolsonaristas, as máscaras viraram um símbolo de repressão e falta de liberdade e muitos proclamam o direito individual de não usá-las. O Ministério da Saúde quer passar a sensação de que o problema sanitário acabou num momento em que os riscos da Covid-19 ainda são bastante altos. A continuidade da vacinação, que Bolsonaro sempre tratou com desdém, continua sendo determinante para diminuir o contágio e tornar a doença menos grave, aliviando os leitos de UTI. Quanto às medidas de isolamento, há uma ansiedade muito grande de se acabar com elas, mas, nas atuais circunstância, é preciso estar preparado para retomá-las se for necessário. Além disso, com o fim da emergência, o governo tende a perder o interesse da realização e no controle das testagens.

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) enviaram, terça-feira, 19, um ofício ao ministro Queiroga no qual pedem um período de transição de 90 dias antes da decretação do fim do estado de emergência pela Covid-19. Segundo os conselhos, o pedido tem o objetivo de fortalecer “a capacidade assistencial instalada em estados e municípios, bem como a adequação gradual ao novo cenário de saúde nacional”. Na avaliação do Conass e do Conasems, cujos integrantes atuam na linha de frente do combate à doença, a pandemia “ainda não acabou”, o que torna “necessária a manutenção das ações de serviços de saúde, sobretudo as da atenção primária, responsáveis pela vacinação e pela capacidade laboral dos leitos hospitalares ampliados”. O Conass e o Conasens, órgãos que reúnem os secretários municipais e estaduais de saúde, pedem mais racionalidade na transição com a revisão gradual das normas. “Não é o caso de decretar de supetão o fim da pandemia. A decisão do governo não foi técnica”, diz Naime. Liberar máscaras irrestritamente, por exemplo, é algo que atende as reivindicações de determinado público que tem uma visão mais negacionista. “Ainda há possibilidade de surgimento de uma nova variante”, afirma.

Há três cenários possíveis para a doença a partir de agora. O mais provável é que, por causa da vacinação em massa, com cobertura de mais de 70% da população, o vírus perca gradualmente importância na saúde pública até praticamente desaparecer. Nessa hipótese, poderia haver picos periódicos de contágios e mortes na população mais suscetível. O segundo cenário é o que prevê o surgimento de novas sub-linhagens da Ômicron menos infecciosas e letais que não exigiriam doses adicionais de reforço da vacina. E o terceiro cenário, o mais improvável, é o surgimento de uma outra variante da Ômicron, mais transmissível e virulenta, que exigiria reformulação das vacinas e uma eventual retorno das medidas de isolamento a fim de proteger a população mais vulnerável. Na China, um novo surto de Covid-19 na cidade de Xangai tem mostrado que o coronavírus ainda é capaz de fazer estragos e não se pode relaxar com as medidas preventivas.

“Se antes já havia total desatenção, agora, com o fim do estado de emergência, tudo ficará ainda pior” Alexandre Naime, vice-presidente da SBI (Crédito:Divulgação)

Situação nos EUA

Os dois países do mundo mais afetados com maior número de mortes pela Covid-19, os Estados Unidos e o Brasil, têm demonstrado estratégias diferentes na fase atual da pandemia. Nos Estados Unidos, que contabiliza 989 mil mortes, e onde também a letalidade da doença é decrescente, o presidente Joe Biden decidiu ser mais cauteloso e ampliou a emergência sanitária por mais três meses, o que permitirá que os cidadãos continuem sendo testados e recebendo tratamento gratuitamente. O Brasil, com 662 mil mortes, por conta das ambições políticas de Bolsonaro, preferiu acabar sumariamente com o estado de emergência, ainda que a incertezas sobre a doença continuem sendo grandes. De alguma forma, a decisão brasileira flerta com o negacionismo que caracterizou as iniciativas do governo desde o início da pandemia.

Mortes em Xangai
Variante ômicron faz contágios dispararem na China e impõe lockdown

CONFINAMENTO Agentes de saúde atuam em Xangai para manter as pessoas isoladas dentro de casa: risco para os mais vulneráveis (Crédito:Chen Jianli)

A prova de que o comportamento do vírus é imprevisível e de que seu controle definitivo ainda exige muita atenção e cuidado é o recrudescimento da doença na China, em especial na cidade de Xangai, onde o número de contágios aumenta velozmente e mortes voltaram a ser registradas. O problema é uma nova cepa da variante Ômicron, altamente transmissível, que impôs a decretação de um novo lockdown na cidade. Há três semanas, milhões de moradores da cidade estão em confinamento obrigatório.Nos últimos dias, o governo local registrou pelo menos dez óbitos, todos de pessoas idosas não vacinadas. O problema na China é que a prioridade do sistema de saúde local é vacinar a força de trabalho e não a população mais velha e suscetíveis. Além disso, seus dados sobre contágios são confusos e pouco confiáveis. É o maior surto de Covid-19 na China desde que o vírus foi identificado pela primeira vez em Wuhan, no final de 2019.