Estou há três dias internado num hospital.

Sinto-me dentro do filme “O Discreto Charme da Burguesia”, do Buñuel.

Como no clássico, não consigo concluir uma única tarefa sem ser interrompido, no meu caso, por um gentil profissional de enfermagem.

Tento ver TV.

— Olá Sr. Mentor. Sou a Jenifer e vim medir sua pressão.

Tento jantar.

— Olá Sr. Mentor. Sou o Wellington e vim medir sua temperatura.

Olá, Olá, Olá, eu sou, eu sou, eu sou.

Gente educada e profissional.

Longe de mim criticar quem cuida da minha saúde.

Mas desisti de decorar seus nomes.

É desnecessário, porque a mesma pessoa nunca invade meu quarto mais de uma vez.

É sempre alguém novo.

Agora entrou o André.

— Glicemia, seu Mentor. – anuncia sua meta e já assume intimidade.

Diz que é “da quebrada” e que trabalha naquele hospital há mais de nove anos.

Ele mesmo não deve ter mais do que uns 30 anos de idade.

Gosto dele de cara. Cabelos raspados com Gillette, falador, bom sujeito.

— O senhor sabe que minha vida mudou depois de alguns anos trabalhando aqui? – confessa enquanto prepara o equipamento para furar meu dedo.

— Mesmo? O que aconteceu? – pergunto.

— Nada de especial. Apenas comecei a prestar atenção nas histórias de cada um, entende? Porque todo mundo tem uma história que ensina alguma coisa. Mas não é todo mundo que escuta os velhinhos de 95… 100 anos.

Penso se ele imagina que essa seja minha idade.

— Eu comecei a escutar. – continua.

— Puxa… que bom! E o que você aprendeu com isso?

André me olha pensativo.

— Ah, muita coisa. – espeta a ponta do meu indicador e espreme para conseguir uma gota de sangue.

— Me dá um exemplo.

— Por exemplo, aprendi a diferença entre a ansiedade e a pressa.

— Verdade? E qual é a diferença?

André esfrega meu dedo no aparelho que mede a glicose e apoia o equipamento na cama, para poder utilizar as mãos em gestos amplos.

— Bom… é assim… ansiedade é muito ruim. Faz a gente ficar tenso para conquistar as coisas, entende? – traz as mãos perto do peito, constrito, com uma expressão facial cheia de rugas.

Continua:

— A ansiedade aperta o coração da gente e acaba criando a maioria das doenças. Essa tensão toda faz muito mal e muitas vezes nem percebemos.

André relaxa o gesto quase teatral e agora olha para um horizonte imaginário, meditativo.

Dou alguns segundos para que ele se recupere emocionalmente e continue sua explanação.

Mas ele mantém o silêncio.

— E a pressa, André? – pergunto.

André volta os olhos para mim e sorri.

— Ah, a pressa… a pressa é quando vemos o que queremos lá na frente. E corremos, corremos, corremos para alcançar, percebe? Traçamos nossos ideias e vamos à busca deles, com cada vez mais vontade.

— E isso é bom?

— Claro que não. Porque aí, quando não alcançamos o que queremos, vem a angústia, o sofrimento, a ansiedade, as doenças e tudo mais que eu já falei.

Fico olhando para André, tentando encontrar uma mensagem positiva em tudo isso.

— Então o que você está me dizendo é que…

— Que não tem jeito, seu Mentor. Estamos ferrados de qualquer jeito. – ele responde juntando seus equipamentos.

— E é isso que você aprendeu com os velhinhos de 100 anos?

— Foi isso. – caminha para a porta – Melhoras para o senhor!

— André?

— Sim, senhor?

— E quanto deu a glicemia?

— 171. Altíssima. Olha aí o que eu estou falando.

171.

Faz sentido.