Perspectiva 2022/História

Quando, há cem anos, em 1922, no centenário da Independência, o engenheiro e historiador Affonso de Taunay estabeleceu as bases conceituais do Museu do Ipiranga e constituiu sua coleção, a ideia central era colocar os bandeirantes e o poderio dos paulistas de antanho no alto do pedestal. Uma visão do passado que revalidava os grandes feitos dos homens brancos se impôs na implantação do espaço de exposições, seguindo o pensamento do seu diretor e as imposições simbólicas associadas à República. Agora, no bicentenário, a história é outra. Reformado, ampliado e modernizado, o museu, que fechou em 2013, por causa do risco de desabamento, e será reinaugurado no próximo dia Sete de Setembro, vai se desenvolver de forma diferente, buscando outros atores esquecidos no processo de Independência e refletindo a diversidade de forças na sociedade e sua composição racial. Personagens secundários na história oficial ganharão protagonismo. Se a visão que definiu o centenário foi a de Taunay, a do bicentenário está mais alinhada com a de um de seus sucessores, o historiador Ulpiano de Menezes, que comandou a instituição entre 1989 e 1994 e estabeleceu um ambiente de reflexão crítica sobre os acontecimentos. “Tradicionalmente, o museu está associado à memória das elites cafeicultoras e dos Bandeirantes”, diz o historiador Paulo Garcez, professor da USP e um dos curadores do museu. “Mas em 100 anos aprendemos muito. Vamos fazer uma revisão importante dessa representação do passado brasileiro.”

Acessibilidade e segurança

Para abrigar novas ideias relacionadas ao processo de independência do País e inserir o museu numa lógica contemporânea, está sendo feito um investimento total de R$ 210 milhões na sua revitalização. A reforma do monumento, 78% concluída, é impressionante pela grandiosidade e nível de detalhamento. Além de dobrar de tamanho, já que abaixo do prédio histórico, no nível no Jardim Francês, foi construído um anexo de 6 845 metros quadrados, a obra incorporará vários equipamentos indispensáveis. Haverá um espaço climatizado para receber exposições temporárias, algo impossível na antiga construção, por causa da falta de ar condicionado, além de café, auditório com capacidade para 200 pessoas, bilheterias e loja. O que se vê neste momento é um trabalho impecável e acelerado de recuperação de pisos, elementos de marcenaria, como portas, janelas e batentes e de espaços de exposições, que mobiliza cerca de 450 profissionais. “Toda a obra é muito delicada e envolve a recuperação de 220 portas e 1,9 mil metros quadrados de assoalhos”, diz o engenheiro Frederico Martinelli, que comanda o projeto. A construção ganhará um mirante panorâmico com vista de 360 graus. Também serão resolvidos problemas de acessibilidade e de segurança. Os incêndios do Museu Nacional, no Rio, e do Museu da Língua Portuguesa, sensibilizaram patrocinadores e autoridades para tornar o museu seguro. Não por acaso, sua atual diretora, a arquiteta Rosaria Ono, que ficará no cargo até o ano que vem, é especialista em previsão de riscos.

Marco Ankosqui

O investimento total na restauração e ampliação do museu será de R$ 210 milhões e sua inauguração fará parte das comemorações de Sete de Setembro

Concluído em 1890, o prédio histórico, projetado pelo engenheiro e arquiteto Tommaso Bezzi, foi erguido para marcar o lugar da Independência e referendar a importância simbólica do grito de Dom Pedro I às margens do Riacho do Ipiranga. Numa primeira fase, abrigou o Museu de Ciências Naturais, depois, com a chegada de Taunay, em 1917, foi convertido em museu histórico. Desde 1963, o Ipiranga, cujo nome oficial é Museu Paulista, está sob o controle da Universidade de São Paulo. Seu acervo conta com 450 mil itens, entre objetos, obras de arte, mobiliário e documentação textual. Até 2010, era o espaço museológico mais visitado da cidade, graças principalmente às excursões de estudantes, e ao forte vínculo afetivo que tem com a população. A expectativa é que recupere essa condição a partir do ano que vem. A entrada de estudantes será gratuita e o preço estimado do ingresso será de R$ 15 a R$ 20. Com tantas novas atrações, o que se espera é que quando estiver funcionando a plena carga, o museu receba cerca de um milhão de visitantes ao ano.

GIGANTISMO Obra envolve a restauração de 220 portas e de 1,9 mil m2 de assoalhos (Crédito:Marco Ankosqui)

“O processo colonial foi muito violento e as representações atuais oferecem uma visão pacificadora do passado”, diz Garcez. “Iremos superar o legado de Taunay, que era muito excludente e enaltecia a figura dos exploradores”. Taunay esteve à frente da instituição até 1945. Foi sucedido pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Ulpiano assumiu posteriormente e reorientou as perspectivas narrativas do museu a partir de três pilares: a história do imaginário, o universo do trabalho e cotidiano e sociedade. Na inauguração, prevista para a efeméride da Independência, serão abertas 11 exposições permanentes e uma temporária chamada Memórias da Independência, com duração de quatro meses, que, além da epopeia paulista, incorporará movimentos libertadores de outros estados, visando mostrar a amplitude do processo histórico. Mas apesar da revisão conceitual, ninguém precisa se preocupar. Um dos maiores destaques do museu, o gigantesco quadro de Pedro Américo, “Independência ou Morte”, que foi totalmente restaurado, continuará brilhando no mesmo Salão Nobre de sempre para deleite dos visitantes.