De garoto-propaganda a foragido da Justiça: vida de Samuel Meffire vira minissérie, apresentando ao público um lado pouco conhecido da história da antiga Alemanha Oriental depois do comunismo.”Não há como inventar uma coisa dessas” é uma frase bem batida para descrever filmes e séries “baseados em histórias reais”.

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Mas se um caso merece a alcunha “mais estranho do que a ficção”, é o de Samuel Meffire, cuja vida inspirou a nova série alemã Sam – um saxão, que estreou nesta quarta-feira (26/04) no serviço de streaming Disney+.

Nascido nos arredores de Leipzig em 1970, filho de um camaronês com uma alemã, Meffire se tornou o primeiro policial negro da Alemanha Oriental. O jovem ingressou na Deustche Volkspolizei (Polícia Alemã do Povo) em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, mas antes da Reunificação da Alemanha.

No início dos anos 1990, por um curto período, ele se tornou o garoto-propaganda de uma Alemanha nova, tolerante e multicultural, numa campanha para mostrar um lado diferente da antiga República Democrática da Alemanha (RDA).

De garoto-propaganda a foragido

Mas depois da ascensão veio uma queda dramática: frustrado com a burocracia policial e a corrupção política, Meffire deixou a polícia e acabou trocando de lado. No fim da década, era considerado foragido, procurado uma série de assaltos à mão armada, e fugiu para o Zaire, hoje República Democrática do Congo, onde foi capturado numa guerra civil. Extraditado para a Alemanha e condenado, ficou preso durante sete anos.

Embora a série da Disney+ não abra mão da liberdade criativa – mudando nomes, combinando certos eventos, inventando situações e personagens – para adaptar melhor a história para a minissérie de sete episódios, a essência, os fatos básicos da vida de Meffire conduzem a ação.

“Quando ouvi falar da história do Sam pela primeira vez, há alguns anos, imediatamente pensei que daria um programa de TV incrível”, conta Jörg Winger, produtor e cocriador de Sam – um saxão. “Isso foi em 2006, e na época, todas emissoras a que apresentávamos a proposta nos davam a mesma resposta: ‘Pessoalmente, adorei a história. Mas não acho que o público esteja pronto para ela'”.

Segundo Winger, os executivos queriam dizer que o público alemão não aceitaria a realidade de Samuel Meffire, de um homem negro nascido na Alemanha Oriental cuja história pessoal lança uma luz diferente na sua história política compartilhada.

Reflexo do destino de afro-alemães na RDA

Quando o muro de Berlim caiu, em 9 de novembro de 1989, havia quase 100 mil trabalhadores estrangeiros não brancos registrados na Alemanha Oriental, a maioria vinda dos chamados “Estados irmãos” socialistas, que incluem Cuba, Vietnã, Angola e Moçambique.

Estudante de engenharia do Camarões, seu pai cresceu com uma visão “basicamente positiva” da Alemanha, conta Meffire. “A percepção na região dos Camarões, de onde ele vinha, era que o período colonial alemão, comparado aos governantes franceses que vieram depois, foi uma espécie de era dourada”.

Meffire não chegou a conhecer o pai, que morreu no dia de seu nascimento em circunstâncias misteriosas. Tanto na série da Disney, quanto em suas memórias Me, a Saxon (Eu, um saxão), escrita em coautoria do historiador e dramaturgo alemão Lothar Kittstein, Meffire apresenta uma teoria, sugerida por sua mãe, de que o pai foi envenenado por agentes que tentavam castrá-lo quimicamente.

Queda do Muro expôs neonazismo

A vida de um menino negro na Alemanha Oriental não era fácil, admite Meffire. Mas as coisas pioraram muito depois do colapso da RDA, com extremistas de direita e neonazistas se aproveitando do vácuo de poder.

“É quase impossível para alemães ocidentais imaginar como era, mas os neonazistas marchavam pelas ruas de Dresden, às centenas. Se eles viessem um negro, o perseguiam, atacavam e espancavam.” Em seu livro, Meffire, que é fã de ficções fantásticas, chama essas hordas de saqueadores de “orcs” e “vampiros”.

Surpreendentemente, ele afirma que a polícia era, para ele, “um lugar de solidariedade, de camaradagem: “Eu pessoalmente não sofri racismo nem ódio. Éramos uma irmandade.”

Uma história que vai além dos clichês

A primeira produção alemã da Disney+ passa por vários gêneros – thriller policial, drama policial, história de amadurecimento – enquanto conta a história da vida de Meffire. As mudanças de tom são sustentadas pela atuação de Malick Bauer no papel principal, e por um elenco majoritariamente composto por afro-alemães, incluindo o cocriador e coautor Tyron Ricketts, Nyamandi Adrian, Paula Essam e outros.

A diversidade também se estende aos bastidores, com coautores que incluem o ator e escritor afro-alemão nascido na RDA Toks Körner e a roteirista austro-nigeriana Malina Nwabuonwor.

O resultado é algo quase revolucionária para a TV alemã: uma série popular, destinada a um público amplo, que conta uma história complexa sobre afro-alemães sem cair em clichês e generalizações.

“Exibimos o filme no escritório do governo da Saxônia em Berlim. O ex-ministro do Interior Heinz Eggert, braço direito do chanceler federal Helmut Kohl na época, disse que lhe deu uma nova visão sobre a história que ele mesmo viveu”, conta Winger.

Os sete episódios de Sam – um saxão não contam a história de Meffire como realmente aconteceu, frisa o homem de 52 anos, mas capturam “o sentimento, a verdade emocional” de sua incrível vida. Atualmente o ex-policial mora com a esposa e duas filhas em Bonn, onde trabalha como escritor, assistente social e segurança.