Somos ensinados desde cedo que a violência contra as mulheres faz parte da história. Parece que para ter direitos minimamente garantidos nesse nosso mundo patriarcal, a única saída possível é nascer homem.Esta semana começou com uma felicidade. No dia 26 de junho, comemoramos os 80 anos de Gilberto Gil, um dos maiores nomes da música brasileira, um dos maiores nomes do Brasil – e um dos melhores ministros que esse país já teve. Até mesmo o Google teve que se curvar à imensidão de Gil, fazendo uma justa homenagem ao homem que compõe e que canta muito do que conhecemos como brasilidade.

Não saberia dizer qual música de Gil é a de que mais gosto. Mas, dentre as dez primeiras, está Super-homem, a canção. O próprio Gil nos conta que a música foi feita a partir do filme Super-Homem de 1978. Na ocasião, ele não havia assistido ao filme, mas ficou encantando com a sinopse feita por Caetano Veloso, numa madrugada de muita conversa. E nessa mesma madrugada, com o dia já amanhecendo, nascia Super-Homem, a canção.

O bonito dessa música é que ela fala de algo sistematicamente silenciado: as limitações do universo masculino. Vivemos num mundo que há séculos é ordenado pelo patriarcado. Uma palavra que está diretamente ligada à uma figura icônica da masculinidade: o pai. Isso significa dizer que as experiências, desejos, interesses e intenções dos homens organizam e definem nossas sociedades.

Obviamente, esse “homem” é um ser atravessado por uma série de outras identidades: raciais, de gênero, de classe. Mas esse mesmo “homem”, acaba por usufruir (de forma diferenciada) das benesses do mundo que ele ordena, mesmo que à força e abandonando outras possibilidades de ser (super-) homem.

É possível repensar toda a história da humanidade a partir de uma leitura a contrapelo da estruturação patriarcal. Na realidade, isso já vem sendo feito por muitas intelectuais e ativistas feministas, que não coadunam mais com a naturalização da violência que essa longeva tradição patriarcal nos impõe. Uma violência que limita a própria experiência de ser homem, mas que impõe a violência como linguagem corrente para as mulheres.

Nesses mesmos dias em que comemoramos Gil e tudo o que ele representa, dois casos de estupro vieram à tona no Brasil. O primeiro, de uma menina de 11 anos que foi praticamente coagida por representantes da Justiça brasileira a manter a gravidez oriunda do estupro, quando a lei brasileira prevê o direito ao aborto. O segundo caso foi o da jovem atriz Klara Castanho, cuja gravidez decorrente de estupro f no perverso show business de uma mídia torpe, que passa ao largo de qualquer conduta ética do jornalismo.

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Como de costume, as impressões e opiniões públicas a respeito dos dois casos recaíram nas mulheres, vítimas de uma violência indizível. Muitos julgamentos foram feitos. Mesmo porque, em ambos os casos, o aborto, e o direito a ele, estavam em questão. Ou melhor, estavam em discussão. Porque a lei é clara. Mesmo que ainda tenhamos um longo caminho para a necessária descriminalização do aborto, a lei brasileira garante o direito à interrupção de gestações oriundas de estupros. Mesmo assim, a menina de 11 anos e a jovem atriz foram massacradas, depois de terem sido sexualmente violentadas.

Difícil imaginar por o que essas duas mulheres – uma delas é uma menina que mal chegou à puberdade – passaram. E aqui, me solidarizo com a dor de ambas.

E dessa solidariedade vem a pergunta: e os homens? O que se diz e o que se faz juridicamente com esses homens que travestem sua masculinidade em violência sexual? É absolutamente estarrecedor o fato de que, dentre as muitas opiniões, julgamentos e linchamentos feitos, poucas pessoas pararam para pensar na autoria desses episódios, no fato de o aborto ter se tornado uma possibilidade porque homens estupraram mulheres.

Uma frase da escritora Eliane Alves não me saiu da cabeça: “Não há decisão certa, ao que parece, para uma mulher. Assim, como não existe idade certa, ao que tudo indica. A decisão certa e a idade correta é nascer homem.” Pois bem, parece que para ter direitos minimamente garantidos nesse nosso mundo patriarcal, a única saída possível é nascer homem.

O estupro contra as mulheres é sistematicamente normalizado na nossa sociedade. Lembro-me do famoso Rapto das Sabinas, um episódio lendário da Roma Antiga, que nada mais é do que um estupro coletivo, naturalizado como fato histórico, contado como parte do processo de formação de um dos maiores impérios da humanidade. Um dos muitos exemplos de como somos ensinados desde a mais tenra idade, com pouca ou nenhuma criticidade, que a violência contra as mulheres faz parte da história. É a nossa norma.

Uma norma que culpa e espezinha as mulheres e não responsabiliza os homens, que seguem vivendo com a “ilusão de que ser homem bastaria”. Não basta ser homem. Pouco adianta restituir a glória. É preciso ser mulher e mudar o curso da história.

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.


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