É possível soltar Ali Babá e manter preso os quarenta ladrões? Essa é a dor de cabeça do momento que acomete os onze ministros do Supremo Tribunal Federal – não é brincadeira não, alguns deles até têm andado ultimamente com cartela de neosaldina no bolso. Abandonemos a fábula, entremos na vida real, e eis a indagação: é sensato quebrar a jurisprudência de que o início do cumprimento de pena tem de ocorrer após condenação em segunda instância e, assim, colocar na rua o ex-presidente Lula, o ex-ministro José Dirceu e mais cerca de quatro mil e novecentos presidiários que ganhariam a liberdade pelo princípio da isonomia? Lula é o Ali Babá, os cento e noventa bandidos são os quarenta ladrões e a Justiça é a Justiça. Tudo pode acontecer. Disposto a atacar de frente a Lava Jato, desidratá-la e induzi-la a estado de coma, o STF começa agora a julgar a questão que envolve a execução de sentenças penais condenatórias. O que se sabe, nos bastidores da Corte, é que a segunda instância, se não cair de vez, será bem relativizada.

É plausível pensar que tal tema já deveria estar juridicamente sedimentado, uma vez que, desde fevereiro de 2016, as decisões são favoráveis à segunda instância. Ocorre, no entanto, que a Lava Jato cresceu mais do que se supunha e surgiu um preso chamado Lula. Aí a Corte se dividiu. Como a clareza é sempre sinal de boa fé e vive-se hoje a maior confusão jurídica desde a redemocratização do País, em 1985, vale uma rápida explicação. Em qualquer processo a sentença inicial é dada pelo juiz de primeira instância. Se condenado, o réu recorre aos Tribunais de Justiça, que formam a segunda instância. Até esse degrau, discute-se provas.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A questão da segunda instância deve sair dessa Corte e passar para o STJ (Crédito:Divulgação/STF)

Complementando a pirâmide de recursos, nela estão o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), em pé de igualdade. A diferença é que o primeiro verifica se houve falhas processuais, o segundo se debruça sobre quesitos constitucionais — ou seja, não mais estão em jogo provas contra ou a favor do réu. É por isso, então, que cabe ao STF decidir sobre o momento da prisão. Atualmente ele é composto de dois blocos completamente distintos: os ministros garantistas, com a interpretação de que a Constituição só permite a prisão após terceira instância quando fixa que a sentença condenatória tem de transitar em julgado, e os ministros legalistas, que defendem a prisão em segunda instância como princípio contra a impunidade. Feita essa separação, vamos ao que pode ocorrer nos próximos dias.

Há uma ministra na Corte, sem dúvida uma das mais competentes julgadoras do Brasil, como a dizer: “decifra-me” ou “devoro-ter”. Seu nome: Rosa Weber. Se ela ficar ao lado dos garantistas, eles serão cinco: além de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Gilmar Mendes, estaria Rosa. Já o bloco legalista é formado por Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármem Lúcia e Alexandre de Moraes. É muito provável que dê empate na votação e aí o “voto de minerva”, de acordo com o regimento da Corte, será de seu presidente, ministro Dias Toffoli. Igualmente provável é que ele siga a tendência do STF em seu último polêmico julgamento, referente aos prazos para alegações finais de delatores e delatados da Operação Lava Jato.

O Supremo já formou maioria por uma solução intermediária, estabelecendo que somente o réu que tenha recorrido em primeira instância ganha a anulação da sentença e o direito de ver o seu processo retornar à fase inicial. No caso atual, Toffoli tende a determinar que a prisão seja definida pelo STJ, mantendo a segunda instância não como regra mas como exceção. Lula então seria solto? De imediato, não. Ele possui um recurso negado no STJ mas nesse mesmo tribunal há outro em andamento. Se alguém está pensando que dessa forma o STF fica no meio-termo e se vê livre de qualquer envolvimento com eventual soltura de Lula, acertou.

História sem fim

Todo o nó dessa questãonão estará ainda totalmente desatado. O Congresso deve votar uma PEC que propõe a fixação da prisão em segunda instância. Se tal emenda for aprovada, ela valerá mais que qualquer decisão que o STF tenha tomado, uma vez que os congressistas são constituintes originários dotados da legitimidade de criar legislação, enquanto ao STF não cabe legislar. Não faltará gente novamente arguindo a inconstitucionalidade da nova lei e se valendo do trânsito em julgado. Paradoxalmente, o veredito final estará dado. Mas a história poderá não ter fim.

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O tempo e as decisões

Fevereiro de 2009
Condenado em segunda instância e preso, um réu reivindicou junto ao STF, por intermédio de seu advogado, o direito de se valer de todos os recursos em liberdade. Por sete votos a quatro, o tribunal entendeu que a Constituição só permitia o início do cumprimeto de pena após condenação em última instância (trânsito em julgado). O preso foi libertado

Fevereiro de 2016
O STF muda seu entendimento da questão, alegando que a não prisão a partir da segunda instância incentivava o sentimento de impunidade

Outubro de 2016
Ao julgar um habeas corpus, a Corte manteve a determinação anterior, por seis votos a cinco entre os ministros

Novembro de 2016
Em plenário virtual, esteve mantida a execução da pena em segunda instância. A ministra Rosa Weber não votou

Abril de 2018
Julgamento de habeas corpus de Lula: o tribunal ratificou, mais uma vez, a jurisprudênca que criara. Ficou valendo a segunda instância, mas a questão ainda seguiu longe de ser pacificada e a insegurança jurídica persistiu


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