O título da nova exposição do escultor carioca Waltercio Caldas na Galeria Raquel Arnaud é o mesmo de um antigo filme do alemão Wim Wenders, O Estado das Coisas (Der Stande der Dinge, 1981), filmado em Portugal, sobre sobreviventes de uma catástrofe de proporções apocalípticas.

As semelhanças param por aí. O “estado das coisas” a que se refere Waltercio é, antes, uma crítica à estagnação da linguagem da arte contemporânea do que uma alegoria de hecatombe nuclear. Toda a exposição, a começar pela peça da entrada, com duas telas de Mondrian retrabalhadas, usa um repertório de ausências para representar o espaço entre as coisas e criar uma nova sintaxe a partir do vazio que age sobre elas.

Essas ausências tanto podem ser de artistas reais – Mondrian, Caravaggio, De Chirico – como referências históricas (a pintura metafísica, o surrealismo, o minimalismo). Não tanto como citações, mas, antes, como libertação de formas passadas e aprimoramento de uma linguagem experimental cara a Waltercio, mesmo que algumas esculturas façam referência ao próprio passado do artista – e as peças da série Veneza, executadas originalmente em 1997 para a 47.ª edição bienal italiana, são exemplos disso.

O escultor Waltercio não virou pintor, mas muitas obras da exposição usam telas em sua composição – de A Esquina (2021), que amplifica o espaço metafísico de Giorgio de Chirico, a Mundo Aberto (2021), que evoca o espaço surrealista de Dalí. No primeiro caso, fios de metal saem da tela como nas peças do venezuelano Soto e alcançam o olho do espectador, levando-o a redesenhar mentalmente a construção da perspectiva da pintura. No segundo, surgem objetos agregados à paisagem que corroem a bidimensionalidade, caso também da peça Piano Solo (2021), composta de uma taça de vinho ao lado de um cubo, figura imantada de carga poética por causa da última obra de Mallarmé (Um Lance de Dados).

A presença da poesia na recente exposição de Waltercio ecoa especialmente a do surrealista português Antonio Maria Lisboa (1928-1953), que viveu pouco, mas deixou meia dúzia de poemas esotéricos que abriram as portas da percepção da geração pós-modernista. A peça em questão (A Verticalidade e a Chave, de 2020) é uma estrutura de aço inoxidável com uma chave pendurada numa das hastes, que sintetiza a proposta de Lisboa: a conjugação do sonho com a realidade, ou, segundo ele mesmo, a “surrealidade”, o conhecimento oculto que o racionalismo contemporâneo não atingiu. “Há uma tendência a considerar linguagens como o surrealismo como um movimento, mas isso é um equívoco”, sentencia Caldas.

ABISMO. O artista não pretende – em peças como a citada – retomar a linguagem do surrealismo, mas ir além dela, atraído por uma espécie de abismo em que a arte deixa de ter fronteiras e o que interessa mesmo é a passagem de uma matéria a outra – e Caldas usa a história da arte como matéria, seja desconstruindo As Meninas de Velásquez num livro (em 1996), ao remover os protagonistas da cena e investigar a construção do espaço nessa pintura, ou ao reconstruir uma natureza-morta de Morandi por meio da ascese diáfana do desenho do perfil de seus objetos no espaço, feito com aço (série Veneza, 1997).

É quase impossível ver seu trabalho considerando apenas os limites históricos. Ele já disse que gostaria de produzir objetos “com o máximo de presença e o máximo de ausência” – e a série Veneza, mais uma vez, é exemplar nesse sentido, com fios metálicos que desenham formas de objetos no ar, num jogo ambíguo entre bidimensional e tridimensional (e nome de artistas fixados em plaquetas de acrílico transparente, num exercício entre ver e ler, que se transformam em sinônimos). Há na exposição inúmeros exemplos dessa correspondência.

No segundo andar, a linguagem do desenho é explorada em duas séries: numa delas, o esboço da figura humana, quase um espectro, é iluminado por rastros de cor, negando a mímesis e afirmando a autonomia poética. É do silêncio e do vazio que nasce, afinal, a arte de Waltercio.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.