O Acordo de Munique é um dos episódios mais ignorados do século 20. Isso porque ele apontou para uma direção que acabou bloqueada: a da paz na Europa, que evitaria a Segunda Guerra Mundial. Também o idealizador da negociação foi jogado ao olvido: o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain (1860-1940). Com o romance “Munique”, lançado pela Companhia das Letras, o escritor inglês Robert Harris pretende tanto demonstrar que o Acordo de Munique ajudou a unir os Aliados como resgatar o legado de Chamberlain. “Este livro resulta de uma obsessão de 30 anos pelo tema”, diz Harris. “Adoro os dilemas morais do episódio. As pessoas têm uma falsa impressão sobre ele, mas é mais complexo do que pensam”.

O encontro não durou vinte minutos, mas suas consequências alteraram o destino da humanidade. Em 29 de setembro de 1938, em uma sala do Führerbau em Munique, Adolf Hitler convidou três chefes de Estado para fechar um acordo que, em troca da promessa de não atacar os vizinhos, lhe garantisse os territórios dos sudetos, com 3 milhões de alemães, então parte da Tchecoslováquia. Hitler pretendia impor o “espaço vital da raça germânica”, recém-ampliada com a anexação da Áustria.

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Participaram da reunião os primeiros-ministros Neville Chamberlain e Édouard Daladier, da França, além o líder fascista Benito Mussolini e seu genro, Galeazzo Ciano, ministro das relações exteriores da Itália. O documento foi assinado tão rapidamente que Chamberlain nem se deu conta de que os maiores interessados nele, os tchecoslovacos, não haviam sido convidados ao evento.

De volta a Londres, no dia seguinte, Chamberlain proferiu a frase que se tornaria infame: “Voltei da Alemanha com a paz para o nosso tempo”. No mesmo 30 de setembro, Hitler anexava os territórios dos sudetos e invadia Praga. Perplexos, os Aliados não declararam guerra. Só o fizeram um ano depois, quando os nazistas invadiram a Polônia. O jogo de traições de Hitler parecia irresistível.

Pior da história

Chamberlain foi enganado por Hitler e desmoralizado em casa — a ponto de o acordo passar a ser conhecido como a Traição de Munique. Em 10 de maio de 1940, o primeiro-ministro renunciou para ceder lugar ao beligerante Winston Churchill. Em seis meses, morria de câncer no intestino. “Chamberlain morto serviu como um bode expiatório conveniente”, diz Harris.

David Levenson

“Aprendi história lendo ficção. Você pode fazer coisas com as ferramentas da ficção que são vedadas ao historiador” Robert Harris, escritor

“Até hoje ele é visto como um personagem desprezível, o pior primeiro-ministro da história do país. Isso é injusto, pois na história recente temos figuras mais desqualificadas a merecer o título.” Robert Harris, de 61 anos e 27 de carreira, é um dos mais produtivos ficcionistas históricos atuais. Seu romance “Pátria” (1992) imagina o mundo nos anos 1960 em que os nazistas tivessem vencido a guerra. É dele a trilogia “Imperium” (2006), sobre o orador romano Cícero. Ele conjuga como poucos imaginação e pesquisa — método que usou para dar a dimensão trágica a Chamberlain e narrar uma história pouco abordada. “A ficção é um ótimo meio para envolve o leitor com fatos históricos”, diz. “Aprendi história lendo ficção. Você pode fazer coisas com as ferramentas da ficção que são vedadas ao historiador. ”

O narrador imagina dois amigos que estudaram em Oxford em 1920 ­­— o inglês Hugh Legat e o alemão Paul von Hartmann ­— e atuam no corpo diplomático de seus respectivos países. Os dois participam de uma conspiração para derrubar Hitler. Legat é secretário de Chamberlain. Hartmann trabalha no ministério de relações exteriores da Alemanha. Com personagens plausíveis, reviravoltas e becos sem saída, o livro corrige a reputação póstuma de Chamberlain como precursor do pacifismo da Europa atual. Além disso, fornece consistência a um fato histórico que vale ser melhor compreendido.