Para se formar como a atriz brasileira de maior renome nos últimos 60 anos, Fernanda Montenegro nunca tirou diploma. Valeu-se do suor. No álbum “Fernanda Montenegro: Itinerário Fotobiográfico” (Sesc), ela se exibe como uma trabalhadora obsessiva. Dedicou seis anos à organização do livro que narra sua trajetória pessoal e artística. São 500 páginas repletas de memórias, cartas, figurinos, palestras e resenhas. Chamam a atenção as imagens, fotografias, documentos e figurinos que ela salvou da destruição, pois já havia perdido metade do material.

“O ator, e unicamente o ator, é o começo
e fim da arte teatral. Somos provedores”
Fernanda Montenegro, atriz (Crédito:Divulgação)

Rever a carreira representou para Fernanda “uma vertigem”. Ela chama o volume de “um imenso álbum de família” e de “egotrip, não tão ego”. A história começa no final da década de 1940, quando a jovem carioca Arlette Pinheiro da Silva parecia não prometer sucesso e glórias. Nascida e criada no bairro do Campinho, subúrbio da Zona Norte, em uma família ítalo-brasileira, ela não se destacava pela beleza; suas irmãs, Aída e Áurea eram mais vistosas. Arlette era magra e tinha olhos grandes. Mas era ousada e se destacava pela voz voz grave. Aos 17 anos, escreveu o primeiro e único poema: “Vontade de chorar… chorar pelo sofrimento de querer todas as coisas, de viver todas as vidas… e não poder. Sonhar.” Com a ambição de conquistar o mundo, estreou em 1945 como atriz na rádio Roquette Pinto, com a novela “Sinhá Moça Chorou”, de Ernani Fornari, sobre a Guerra dos Farrapos. Na emissora fez também locução de notícias e produziu e apresentou o programa “Passeio Literário”. Criou para si o pomposo nome artístico de Fernanda Conde de Montenegro, que logo simplificou.

Em 1950, sentiu-se pronta para atuar no espaço efêmero que paradoxalmente a eternizou: o palco. Estreou como a espevitada Zizi na comédia “Alegres Canções da Montanha”, de Julien Luchaire, no teatro Copabacana. Sua criação fez sucesso e foi o primeiro entre 60 papéis seus que marcaram os palcos do Brasil. Tinha 19 anos. Hoje, aos 88, parece ter vivido todas as vidas e sonhado por meio dos papéis que defendeu no rádio, no teatro, no cinema (com 29 personagens) e finalmente na televisão. Primeiro no teleteatro — gênero esquecido, onde atuou em 89 papéis — e depois em telenovelas e séries, com 37 participaçõess. Até hoje foram 215 personagens em 73 anos de atuação.

Sem causas

Para se tornar a “grande dama” dos palcos brasileiros, Fernanda conviveu — e aprendeu — com as grandes damas que a antecederam e a incentivaram, como Henriette Morineau (1908-1990) Cacilda Becker (1921-1969) e Maria Della Costa (1926-2015). Esta última lhe deu a grande oportunidade, em 1955, com o papel de Lucília no drama “A Moratória”, de Jorge Andrade. A partir de então, consolidou a supremacia e virou símbolo da arte teatral brasileira.

Como lembra a filha, a atriz e escritora Fernanda Torres, Arlette nunca foi de esquerda nem de direita, fez comédia de costumes na época em que os textos políticos triunfavam, não tomou ácido quando podia nem esteve na moda. “É curioso que justamente esse ser que abdicou das grandes ‘causas’ tenha se transformado numa espécie de exemplo de cidadã, algo que exerceu no palco foi o mesmo que exerceu na vida”, afirma.

Em 1967, já consagrada, ela falou a alunos sobre sua vocação. Ensinou então que uma personagem se constrói na metamorfose íntima do ator: “É somente quando terminou esse estudo de si próprio em relação à personagem, exercitado todo o seu ser a servir as ideias que formou e os sentimentos para os quais prepara o seu corpo, nos seus nervos, no seu espírito, até o mais profundo de seu coração, é então que se reencontrará transformado e tentará dar-se”. Eis Fernanda Montenegro: a alma para ela está no palco — e vice-versa.