O sertanista e etnógrafo Sydney Possuelo, 82 anos, é a maior autoridade em grupos indígenas isolados do País. Ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre 1991 e 1993, e responsável pela demarcação das maiores reservas nacionais, como a yanomami e a do Vale do Javari, ele observa hoje o desmanche do órgão e o aumento da violência contra os povos da floresta. A morte do indigenista Bruno Pereira, funcionário licenciado da Funai, e do jornalista Dom Phillips, que preparava um livro sobre a Amazônia, reflete essa situação e mostra que a defesa do meio ambiente e dos grupos indígenas se transformou quase em uma sentença de morte depois que Bolsonaro chegou ao poder. “Tudo começa na cabeça do presidente da República que nomeia um presidente da Funai comprometido com essa política destrutiva e absurda e que trata, por sua vez, de nomear alguém abaixo dele de acordo com a mesma orientação”, diz Possuelo. “E agora os mesmos invasores de sempre se sentem protegidos. É uma proteção explícita do governo federal e o resultado é tiro na terra yanomami e morte no Vale do Javari.”

Os assassinatos de Bruno e Dom sintetizam a situação de violência que se alastra pela floresta?
Diria que eles são o resultado da política implantada pelo governo federal. Desde que era candidato, Bolsonaro já falava que não demarcaria terra nenhuma. Posteriormente fez várias declarações contrárias aos interesses dos povos indígenas. E agora os mesmos invasores de sempre se sentem protegidos. É uma proteção explícita do governo federal e o resultado é tiro na terra yanomami, morte no Vale do Javari, invasão de outras terras indígenas. Todas elas estão ameaçadas e essa é a consequência final da política adotada pelo Bolsonaro.

Inclusive saiu um relatório do Indigenistas Associados (INA) neste mês classificando essa política como anti-indígena.
Com certeza, ainda não vi, mas qualquer relatório que for honesto aos últimos acontecimentos iria nesta direção. O governo é o arquiteto principal de tudo isso.

A situação no Vale do Javari tem piorado desde que o senhor demarcou a reserva?
É um pouco diferente e há a introdução de novas ações contra os povos indígenas. Por exemplo, a questão dos garimpeiros. É mais ou menos recente, não tinha no meu tempo. Implementei essa frente do Vale do Javari exatamente para coibir a ação dos madeireiros, caçadores e pescadores. Esses eram os três elementos que atuavam ali. Uma ação que nós fazíamos de vez em quando com a Polícia Federal era destruir algumas pistas de pouso de aviões que vinham dos países vizinhos. O narcotráfico não tinha muita influência na reserva. Não era uma coisa que incomodava, como, por exemplo, a pesca, a caça e a extração madeireira, que eram cotidianas. Exatamente para isso é que essa frente de contato foi constituída em um ponto crucial, geograficamente importante, que é a confluência do rio Ituí com o Itacoaí, que dá penetração ao coração do Vale do Javari.

O senhor acredita que esse crime tenha um mandante?
Naquela época em que iniciamos a proteção no Vale do Javari, nós trabalhávamos muito próximos da Polícia Federal. Havia um delegado que tinha um excelente trabalho na região e colocou um quadro grande na sala dele com as fotografias de vários políticos, comerciantes, traficantes, todos interligados pelo parentesco ou pelos negócios. Havia ali prefeitos, vereadores, deputados e indicações de como eles se revezavam nessa cadeia de tráfico e em outras ilegalidades, como a questão da madeira. Então tudo isso que hoje aparece bem detalhado e que leva a acontecimentos horríveis como da perda desses dois homens está relacionado a um problema histórico.

Os interesses são muito complexos. O problema é só a pesca ilegal de pirarucus?
Fundamentalmente o interesse sobre a região do Vale do Javari é comercial e envolve as cidades de Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga. A economia dessas três cidades se beneficia do comércio ilegal da madeira, do peixe e da caça. O pirarucu é um dos produtos principais. Quando você segue pelos rios da região você vai encontrando muitas lagoas que ficam com bastante peixe. Os indígenas os utilizam na sua alimentação. Mas há o “olho grande” dos comerciantes ribeirinhos. Muitos deles provêm barcos, alimentação, munição para expedições de pesca ilegal. A madeira também tem um componente internacional Quando ela cai no Rio Javari é um problema sério porque a ação brasileira fica restrita a regulamentos internacionais. O madeireiro que tira a madeira do Brasil e passa ela para o outro lado da fronteira escapa da autoridade brasileira. Toneladas e toneladas de madeiras e peixes são vendidas para o Peru ou para a Colômbia. Outra questão sobre a qual tem se falado pouco é a dos peixes ornamentais, que também são abundantes no Vale do Javari. Havia épocas em que aviões chegavam e saiam carregados desses peixes para serem vendidos em Miami.

Logo que o Amarildo foi preso apareceram dois advogados que eram procuradores dos municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant. O que o senhor acha?
Eu me recordo e rapidamente o caso tomou uma dimensão muito grande. Mas me parece que ambos se afastaram. Rapidamente fizeram uma análise das consequências disso. Não estão mais representando o Amarildo.

O que a Funai está deixando de fazer para que o problema da violência saia de controle?
A Funai é a entidade criada pelo governo para cuidar de todos os interesses dos povos indígenas e sua base na região está num ponto estratégico. Se a Funai agir ninguém entra. Eu atuei com minha equipe ali durante anos. Mantivemos fechado o Vale do Javari. Os indígenas da região ajudavam a montar equipes de vigilância.

Mas agora a situação degringolou.
A Funai está presente, mas faz vista grossa. Os únicos que realmente atuam ali exatamente são indigenistas independentes, como Bruno, que tentam evitar a invasão da terra indígena. As equipes da Força Nacional e da polícia local que atuam na região não fazem nada. Os criminosos passam na frente deles sem serem incomodados. Tempos atrás houve a apreensão de quarenta balsas de madeira e não tem como essas balsas passarem na frente da base sem serem percebidas. Sobre esse aspecto, Bruno se debruçava para combater o desleixo na fiscalização. Ele treinava os indígenas para que cada vez se tornassem mais capazes de tomar conta dos próprios destinos. Meu filho Orlando (Possuelo) também está hoje no Vale do Javari treinando os povos indígenas com tecnologia, fazendo uso de GPS e drones para melhorar a vigilância da reserva. Ele está junto com a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) tentando administrar a terra, já que o Estado está ausente.

E tudo isso é estimulado pelo governo?
Exatamente, tudo começa na cabeça do presidente da República que nomeia um presidente da Funai comprometido com essa política absurda e trata de nomear alguém abaixo dele de acordo com a mesma orientação. Ainda existem alguns funcionários bons e dedicados em campo, mas está cada vez mais difícil encontrá-los. A Funai hoje é um órgão inoperante e anti-indigena.

Há 30 anos, quando o senhor era presidente da Funai, foi demarcado a terra yanomami. Regredimos desde então?
Recentemente estive em um território yanomami e foi uma experiência difícil porque voltei a viver uma situação de trinta anos atrás. Naquela época havia quarenta mil invasores nas terras indígenas. Junto com a Polícia Federal expulsamos todos e fizemos as demarcações. Agora os fatos se repetem. Na medida em que recebem apoio do governo, os invasores ficam mais afoitos. Hoje eles dão tiros na comunidade indígena de dentro do barco. Um absurdo. Sequestram e matam funcionários. Faz pouco mais de dois anos que mataram um em Taguatinga. O que foi feito? Parece-me, às vezes, que a vida dos brasileiros vale menos do que a vida de outros lá de fora. Por causa do desaparecimento de Dom Phillips houve uma mobilização imensa, mas quando morre um brasileiro não é isso que acontece. As próprias autoridades fazem essa distinção.

Defender a natureza e os povos indígenas está virando uma sentença de morte?
Principalmente porque o invasor tem as “costas quentes” e ele sabe que a maior parte dos funcionários da Funai está se dando bem e não tem interesse em defender as terras indígenas. Os que defendem são perseguidos dentro da própria instituição. Então é difícil para as pessoas de fora entenderem, mas esse é o processo que tem acontecido. A própria Funai é indiferente aos povos indígenas e não se importa com a morte de seus funcionários.

Embora tenham tido um papel importante no esclarecimento do crime, os indígenas foram ignorados pela polícia. Por que?
É muito interessante isso que aconteceu. É um retrato da indiferença da sociedade nacional em relação aos povos indígenas. A polícia resgatou o cenário dos acontecimentos graças à participação dos marubos e dos matís. Essa arrogância é típica de toda a nossa sociedade, que lamentavelmente ainda tem esse olhar horroroso. Não houve qualquer agradecimento pela cooperação dos indígenas.

O senhor ainda se define como um sertanista. Esse é um vocábulo e uma função em extinção?
Se depender da Funai já está extinto e não é de agora. Rondon foi o primeiro que recebeu o nome de sertanista. Ele mudou a figura daquele perseguidor do passado, buscador de ouro e de pedras preciosas e a transformou na do homem amigo e defensor dos povos indígenas. Era alguém capacitado a chefiar expedições e fazer contatos com esses grupos. Essa era a parte mais delicada do trabalho da Funai naquela época, mas isso se perdeu totalmente.

Orgulha-se de ter devolvido a medalha do mérito indigenista?
A gente nunca sabe como vai reagir, uma coisa é a teoria e outra é quando você vive a situação. Quando li que o presidente seria condecorado tomei a decisão de devolvê-la. Entregar uma medalha dessas para Bolsonaro, com as declarações que ele tem feito, foi um tapa na cara dos povos indígenas e tirou qualquer importância da homenagem. Foi uma ofensa muito grande aos povos indígenas e eu me considerei ofendido e passei a me sentir mal de ter aquela medalha. Fui ao Ministério da Justiça e devolvi. Tudo isso é muito ofensivo, é um comportamento indecente que diminuiu ainda mais esse governo.