BOMBAS Com mortes em hospital de Mariupol, grávidas feridas chocam o mundo (Crédito:Evgeniy Maloletka)

Mais de 2,3 milhões de ucranianos tinham deixado seu país na última quinta-feira e as estimativas são de que esse total dobre, no mais rápido êxodo humanitário desde a Segunda Guerra. Imagens e áudios mostram o horror que abala e mobiliza o mundo. Esses dramas chocam ao ganhar rostos, principalmente por esta ser uma guerra registrada maciçamente em redes sociais. Toda a devastação é mostrada em tempo real, com famílias desesperadas que deixam a vida para trás, ou que não conseguem fugir e acabam sob escombros, sem água, comida e medicamentos.

A guerra segue com toda sua ferocidade enquanto líderes percorrem países em tentativas diplomáticas de cessar-fogo. Mas as tratativas de gabinete na semana não interromperam a marcha dos combates. Na quarta-feira, a Ucrânia acusou a Rússia de bombardear um hospital infantil e maternidade em Mariupol. Volodymir Zelensky, presidente ucraniano que pediu a integração de seu país à OTAN (proposta negada pela aliança militar para não escalar o conflito), classificou a ação de “crime de guerra” e mandou recado aos europeus: “Nós morremos por vocês também”.

REPULSA Deputado Arthur do Val foi à Ucrânia e voltou execrado por dizer que ucranianas “são fáceis porque são pobres” (Crédito:Divulgação)

No dia seguinte, o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, afirmou que cerca de metade da população já havia deixado a cidade desde o início da invasão russa. Paralelamente, uma negociação entre os ministros de Relações Exteriores de Ucrânia e Rússia fracassou, em Antália, na Turquia. Era uma tentativa de se estabelecer com urgência ao menos de um cessar-fogo de 24 horas em Mariupol, para a retirada de civis em situação desesperadora nessa cidade portuária, estratégica do mar de Azov. Enquanto refugiados ficavam retidos ou viravam alvo da artilharia russa em corredores humanitários que só se concretizaram na quarta-feira, seguiam as informações e contrainformações, quanto ao uso de armas termobáricas e biológicas, além das acusações do governo Putin sobre ucranianos usarem a população civil como escudo humano. O russo não previa a resistência dos ucranianos e seu Exército, apesar da enorme diferença bélica. O temor é que ele aumente os ataques diante das sanções que EUA, Europa e diversos países do mundo estão impondo numa escala inédita. O cerco econômico abalou a economia russa e o regime de Putin e seus oligarcas.

O líder russo ignora o drama dos civis e mantém os bombardeios. Estima-se que até cinco milhões de pessoas deixem a Ucrânia – ou cerca de 10% de sua população. Às fronteiras, chegam em sua maioria mulheres e crianças carregando pouquíssimos pertences, brinquedos e alguns animais de estimação (os homens, convocados a pegar em armas, foram proibidos por Zelensky de deixar o país). Muitas ainda ficam para trás, como Anastasia Yalanskaya, de 26 anos, assassinada com outros dois voluntários que levavam comida a um abrigo de cães. Na capital Kiev, famílias inteiras seguiam refugiadas na última semana nas plataformas mais profundas de estações de metrô, para se abrigar de tiros, mísseis e do frio. Em outras cidades, a população se vê sem água, comida, medicamentos e mesmo saneamento básico, com instalações públicas destruídas pelos bombardeios, além de prédios residenciais. Ainda há casos de Covid sendo tratados.

A VIDA EM UMA MALA Mães e filhas que atravessaram a fronteira por Medyka, na Ucrânia, e chegaram como refugiadas a Przemysl, na Polônia

MORTE Anastásia, 26 anos, foi assassinada ao levar comida para cães em um abrigo (Crédito:Divulgação)

Atrocidades prosseguem, ainda que os corredores humanitários tenham sido abertos para cerca de 200 mil pessoas, a partir de cinco pontos: Kiev, Mariupol, Chernigov, Sumy e Jarkov. Na mão inversa, entram água, alimentos, remédios e equipamentos para tratar de feridos, em doações de várias partes do mundo. Voluntários de países europeus se deslocaram com seus carros para ajudar nas fronteiras. Do lado da Ucrânia, além dos que seguem a pé ou de trem, outros aguardam – pelo menos 100 quilômetros de veículos aguardam passagem em Doruhush, Medyka e Khrebenno. Somente a Polônia já recebeu um milhão de ucranianos em nove centros de recepção.

Depois de vários dias sem medidas concretas, o governo brasileiro enviou um avião da FAB para resgatar brasileiros na Polônia, que levou uma carga de remédios e aparelhos médicos. Na quinta-feira chegaram 42 brasileiros adultos, 20 ucranianos, cinco argentinos e um colombiano, além de 14 crianças. Ainda que tardia e insuficiente, a medida é positiva para a imagem do Brasil, depois do incidente diplomático criado pelo deputado estadual Arthur do Val, que gravou mensagens sexistas ofendendo as jovens refugiadas que buscam escapar do conflito. Uma infâmia, já que as mulheres são especialmente vulneráveis diante da brutalidade e da violência na zona de guerra. Sua ação estapafúrdia, que ocorreu enquanto divulgava ter ido à zona de conflito para ajudar os ucranianos, causou indignação generalizada, inclusive entre diplomatas da Ucrânia no Brasil.

Nações correm para ajudar as vítimas. Da parte da União Europeia (UE), foram disponibilizados 500 milhões de euros (perto de R$ 2,8 bilhões), sendo 90 milhões em ajuda humanitária (85 milhões de euros para a Ucrânia e 5 milhões para a Moldávia, o país mais pobre da Europa), que além do básico para sobrevivência incluem abrigos, tendas, sacos de dormir e cobertores. Os itens já estão na Ucrânia e nos postos dos vizinhos Polônia, Moldávia, Eslováquia e Romênia, para onde a UE também enviou dezenas de profissionais para ajudar na gestão das operações de fronteira, por mais segurança e rapidez no apoio aos milhares de refugiados.

Repressão na Rússia

Para Fabrício Vitorino, mestre em cultura e literatura russas pela USP, Putin usa de cinismo ao listar suas razões para a invasão, falando da desnazificação do país vizinho (o que apela diretamente ao coração de seu povo, que se refere como “Guerra Pátria” à Segunda Guerra Mundial), dos genocídios no Leste, da expansão da OTAN em direção à Rússia e do resgate de territórios. Os milhares de manifestantes que saem às ruas em seu país contra a guerra serão perseguidos, segundo Vitorino, ao mesmo tempo em que os oligarcas “construídos” pelo próprio Putin (e que são sua base de sustentação) se calam. “Aqui dizemos: quem cala, consente. Na Rússia, é o contrário: o silêncio mostra que quem só ouve não está gostando”, observa. “Mas em um país onde não se vive o Estado de Direito é extremamente difícil ser voz dissonante.”

União Europeia e EUA esperam que as sanções financeiras façam Putin recuar da ofensiva militar. Joe Biden se prepara para um conflito demorado. Tenta reequilibrar o suprimento de petróleo no mercado mundial recorrendo inclusive a negociações com o presidente Nicolas Maduro, da Venezuela, que foram divulgadas às vésperas de o presidente americano anunciar o bloqueio total da entrada de petróleo e gás russo em seu país. Os venezuelanos contam com as maiores reservas de petróleo do mundo e produzem o combustível em parceria com o Irã do presidente Ebrahim Raisi, aliado de Putin e também sob embargo americano.

A rápida imposição dessas sanções, e de forma tão integrada, foi inesperada, além de inédita, segundo Juliano Cortinhas, professor de Relações Internacionais da UNB. “Para mim, são um meio e não um fim. Tenta-se trazer o Putin para a mesa de negociações. Como ele e Zelensky estão sob tremenda pressão também em seus ambientes domésticos, há confiança de que consigam conversar. Mas as sanções econômicas demoram para fazer efeito. Por isso, o processo deverá ser longo e à custa de muitas perdas humanas.”

Além de Biden banir a importação de óleo, a União Europeia anunciou que diminuiria a dependência dos combustíveis russos em pelo menos dois terços até o fim do ano, com a compra de gás natural liquefeito dos EUA e do Catar. A hesitação de países europeus em atuar de maneira mais incisiva revela que são muitos os riscos. “Alguns países são próximos da Rússia, geográfica ou comercialmente. E não vão bater de frente com uma potência nuclear”, observa Cortinhas. Mas isso não impediu a unificação das ações contra Putin, enquanto aguardam seus próximos passos.

Para o professor da UNB, Putin sabe que seria um erro remover Zelinsky do poder, porque precisaria reconstruir um Estado sem nenhum apoio, e Zelinsky não consegue vencer os russos. “Aí está a chave: o ponto em que a pressão interna sobre Putin empata com a pressão militar que sofre Zelinsky. É esse cenário que torna a negociação possível. Apesar de muito difícil.”

Comida, mas também afeto

Divulgação

De acordo com o UNICEF, braço da ONU para a infância, metade do total de ucranianos que fugiram do país é formada por crianças: um milhão (com outros 6,5 milhões atingidas de alguma forma pela guerra). Entre elas estava um menino de 11 anos que não teve seu nome divulgado, mas saiu de Zaporiyia, onde está a maior central nuclear da Europa (ocupada pelos russos), e sozinho chegou de trem à fronteira da Eslováquia. Foi enviado a parentes pela mãe, Yulia Pisetskaya, que ficou para cuidar da avó do garoto, incapacitada.

Refugiados se vêem em extrema vulnerabilidade, desenraizados, com perdas importantes e diante de visões impressionantes, diz Cláudia Sodré, que trabalha com situações de desastres – a chamada psicologia de emergências. “No cotidiano, são bem recebidos, mas em um segundo momento podem ser rejeitados. E nem será questão do que precisam esquecer ou do que é melhor lembrar. É uma cicatriz que fica”, diz a psicóloga.

Adultos se mostram afetados emocional e psiquicamente em situações de traumas, mas a dificuldade é maior para as crianças. Se elas não se sentirem em um porto seguro – e rapidamente –, a perspectiva não é boa. “Nada mais, nem ninguém, terá importância. Ou se tornam inseguras, ou criam uma carapaça; ou ‘grudam’ ou desconfiam de todos. Além de comida e lugar para dormir, a criança precisa de afeto para viver. Senão, pode ficar sem comer, ir desistindo, o que chamamos de depressão anaclítica, às vezes até morrer.”

Líderes mundiais se mobilizam

No início da semana, pesos pesados como Olaf Scholz, primeiro ministro alemão, e Emmanuel Macron, presidente francês, procuraram unificar posicionamentos sobre divergências quanto ao gás russo e ainda falaram com o líder chinês Xi Jinping, aliado de Putin, que se ofereceu para mediar o conflito. Mas outras lideranças entram na roda de conversas.

JUSTIN TALLIS

O primeiro ministro de Israel, Naftali Bennett, quebrou o Shabbat para debater durante três horas com Putin (os israelenses optaram pela neutralidade na prática, bloqueando o envio de armas à Ucrânia). De Moscou, foi se encontrar com Sholz em Berlim, cruzando o espaço aéreo da Turquia com permissão do presidente Recep Erdogan. Também falou com Zelensky. Seu par na chancelaria, Yair Lapid, esteve com o secretário de Estado americano Antony Blinken, na Lituânia. Na Letônia,o primeiro ministro canadense Justin Trudeau se reuniu com Jens Stolrenberg, secretário geral da OTAN.

Pelos Emirados Árabes Unidos, o príncipe herdeiro Mohamed bin Zayed, ou MBZ, falou com Putin em busca de uma “solução política” – os dois têm alianças em empreendimentos na Líbia e outros países da África. Narendra Modi, primeiro ministro da Índia, pediu a Putin que falasse diretamente com Zelensky. Nada menos que 60% dos armamentos de seu país são de origem russa, assim como a tecnologia nuclear utilizada pela Índia, para quem interessa o afastamento de Rússia e China (que não usa o termo “invasão”, como quer Putin).