EXPULSÃO Imigrantes deixam Pacaraima a caminho da Venezuela: cidade ganhou reforço de 60 homens da Força Nacional (Crédito:Divulgação)

A crise venezuelana explodiu no território brasileiro da pior forma possível. Na última semana, Pacaraima, a principal cidade da fronteira entre o Brasil e a Venezuela, com 12 mil habitantes, escancarou a situação caótica e o alto nível de tensão que se vive em Roraima.A população local se rebelou contra os refugiados depois que quatro venezuelanos foram apontados como autores de um assalto e de tentativa de homicídio do comerciante Raimundo Nonato, de 55 anos, dono de um supermercado e muito conhecido na cidade. Nonato recebeu uma paulada na cabeça, sofreu um traumatismo craniano, foi ameaçado com uma chave de fenda e perdeu R$ 25 mil no roubo. Os assaltantes estavam mascarados e falavam espanhol. Nonato tem certeza que eram venezuelanos. Quando a notícia do assalto se espalhou boca a boca e pelas mídias sociais, inclusive com boatos de que o comerciante tinha morrido, o que se viu foi uma batalha campal. A população se armou com paus e pedras e expulsou cerca de 1.200 refugiados que moravam nas ruas ou que pretendiam entrar na cidade. Barracas, colchões e pertences foram queimados e a BR-174, que liga o município à capital Boa Vista, foi bloqueada por entulho. O movimento foi comemorado com entusiasmo por vários grupos nas mídias sociais.

ELEIÇÕES A governadora Suely Campos: administração reprovada por 63% da população e considerada boa ou ótima por apenas 9% (Crédito:Divulgação)

Enquanto a população local faz justiça com as próprias mãos, os governos estadual e federal, enredados numa disputa política, deixam o caos se alastrar. A governadora Suely Campos (PP), que disputa a reeleição, insiste em pedir no Supremo Tribunal Federal (STF) o fechamento da fronteira como primeiro passo para estancar o fluxo de imigrantes e acusa o governo federal de omissão e o senador Romero Jucá (MDB), seu adversário político, de tentar prejudicá-la. O presidente Michel Temer, por seu lado, pouco faz para aliviar a pressão financeira sobre Roraima, menor e mais pobre estado da Federação, que viu sua população crescer mais de 20% nos últimos 18 meses por causa dos estrangeiros. O jogo de empurra-empurra tem causado conflitos cotidianos e deixado os moradores do estado insatisfeitos com a saturação dos serviços públicos e a confusão urbana. As manifestações de xenofobia e a circulação de informações falsas ou imprecisas contra os venezuelanos têm aumentado.

REFUGIADOS Moradores de Pacaraima expulsaram do Brasil 1,2 mil venezuelanos: clima de guerra (Crédito:Avener Prado/Folhapress)

Revolta popular

“Essa situação extrema é o reflexo de uma série de medidas muito mal executadas pelos governos federal, estadual e municipal, que não deram a devida atenção ao problema até agora”, diz o professor de relações internacionais Gustavo Simões, coordenador do laboratório de estudos sobre a migração, refúgio e apatridia da Universidade Federal de Roraima (UFRR). “A disputa política está prejudicando o gerenciamento da crise”. Segundo ele, a sociedade roraimense está dividida em relação à questão dos refugiados, e ouvem-se, neste momento, muitos políticos do estado promovendo discursos de aversão ao estrangeiro. Uma parcela da população coloca a migração venezuelana como bode expiatório de problemas anteriores. “Apesar da resposta do governo federal de criar um hospital do Exército, um centro de triagem e dar condições mínimas para aqueles que chegam no Brasil, a verdade é que o controle ainda é muito pequeno e a maioria dos imigrantes não recebe qualquer tipo de auxílio, só restando-lhe ficar nas ruas”, afirma. Cerca de 500 pessoas passam todos os dias pela fronteira em Pacaraima e muitas delas, sem dinheiro, não têm condições de prosseguir viagem até Boa Vista, a 210 quilômetros de distância.Até junho, segundo a Polícia Federal, 128 mil venezuelanos entraram em Roraima dos quais cerca de 70 mil permanecem no estado, a maior parte deles na capital. O número de pedidos oficiais de refúgio ou de residência no Brasil totaliza 46,6 mil.

De olho nas urnas

“O componente eleitoral só torna a situação mais delicada, mas a governadora não age em função desses interesses”, afirma Marcelo Lopes, secretário do gabinete institucional do governo de Roraima. “E a prova disso é que ela, há dois anos, bem antes das eleições, está pedindo apoio, repactuação de dividas e o aumento do controle da fronteira para o governo federal.” De qualquer forma, o clima de insatisfação que toma conta do estado e a pressão sobre a oferta de serviços públicos prejudica suas chances de reeleição. Segundo a última sondagem do Ibope, sua administração é reprovada por 63% da população e considerada boa ou ótima por apenas 9%, o que pode indicar uma insatisfação com seus métodos para lidar com a crise migratória. A pesquisa mostra a governadora em terceiro lugar na corrida eleitoral, liderada por José de Anchieta Júnior (PSDB), apoiado por Jucá, com 36% das intenções de voto.

Na segunda-feira 20, Suely Campos voltou a pedir ao STF a suspensão temporária da entrada de imigrantes em Roraima. Na ação cautelar, protocolada pela Procuradoria-Geral do estado, o governo afirma que Pacaraima se transformou em “um barril de pólvora” e que “futuros incidentes violentos de proporções perigosas, inclusive para a Segurança Nacional do País, poderão ocorrer nos próximos dias”. A governadora também encaminhou um ofício com nove reivindicações ao governo federal, entre elas o ressarcimento imediato de R$ 184 milhões correspondentes a gastos extraordinários com imigrantes nas áreas de saúde, educação e segurança, e a exigência na fronteira de passaportes para estrangeiros que venham de países que não compõem o Mercosul. Segundo ela, nenhum recurso foi transferido para o estado até o momento. O ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, já adiantou que o valor do ressarcimento pedido pela governadora é “descabido”. “O Brasil não pode se negar a receber os refugiados”, declarou o ministro. “Tudo será feito para que não ocorram mais episódios como esse em Pacaraima. O Brasil é signatário de tratados internacionais e temos o dever de receber esses refugiados”. Resta saber como.

O policiamento no município está sendo reforçado. Depois dos incidentes da semana passada, chegaram mais 60 homens da Força Nacional para se juntar aos 30 que já estavam na cidade. Outros 60 deverão chegar nos próximos dias. Também houve a promessa do governo estadual de duplicar o efetivo policial na fronteira, atualmente de 150 policiais civis e militares. “O Brasil que está recebendo 100 mil novos moradores não é o país de 200 milhões de habitantes, mas um pequeno estado com 500 mil pessoas”, diz Marcelo Lopes. “O que a governadora pede é o fechamento temporário da fronteira, por dois ou três dias, para que seja implantado um sistema de controle da imigração e a gente saiba melhor quem são esses refugiados”. Segundo ele, a maioria das pessoas veem da Venezuela fugindo da fome, “mas junto com gente honesta chegam desde menores infratores até pessoas envolvidas com o crime organizado”. Na lista de reivindicações feita ao governo federal, também se inclui o estabelecimento de uma barreira sanitária na fronteira com um posto de vacinação. Por causa da imigração, Roraima voltou a sofrer com doenças que estavam erradicadas, como o sarampo.

“Essa situação extrema é o reflexo de uma série de medidas muito mal executadas pelos governos. A disputa política está prejudicando o gerenciamento da crise” Gustavo Simões, professor de relações internacionais da UFRR

A solução do problema que aflige Roraima passa necessariamente pela interiorização dos imigrantes, que deveriam ser submetidos a algum tipo de triagem para serem distribuídos entre vários estados. Até agora, 700 venezuelanos foram transferidos para Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. No seu pacote de emergência para Roraima, o governo federal anunciou que transferirá a partir desta semana mais 1.000 refugiados. Para Gustavo Simões, a interiorização vem sendo executada de forma precária, tanto em termos qualitativos como quantitativos e a um custo per capita extremamente alto, já que os venezuelanos estão sendo transportados em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). “A política de interiorização não vem sendo aplicada adequadamente”, diz. “As competências e habilidades dos imigrantes não estão sendo avaliadas antes do encaminhamento e não há apoio para a inserção sócio laboral destas pessoas.”

“Tudo será feito para que não ocorram mais episódios como esse em Pacaraima. O Brasil é signatário de tratados internacionais e temos o dever de receber esses refugiados” Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil

A explosão de violência em Pacaraima surpreende porque a cidade sempre teve bom trato com os venezuelanos. Pacaraima é dependente, como toda região Norte do estado, da energia do país vizinho que vem da hidrelétrica de Guri, no estado de Bolívar. O município não tem postos de gasolina e a população local abastece seus carros normalmente do outro lado da fronteira, na cidade de Santa Elena de Uairén, a 15 quilômetros. Dos dois lados, pessoas cruzam naturalmente a divisa para consumir produtos básicos. Apesar dessa boa relação, alguns brasileiros perderam a paciência. Foi o segundo caso de revolta popular em Roraima, neste ano, por causa da imigração. O primeiro aconteceu em março, quando cerca de 300 brasileiros expulsaram 200 venezuelanos, incluindo mulheres e crianças, de um abrigo improvisado na cidade de Mucajaí, a 50 quilômetros de Boa Vista. A expulsão aconteceu depois de uma briga que deixou um venezuelano e um brasileiro mortos. “Uma parte da população está insatisfeita com a situação e qualquer incidente pode disparar uma nova revolta”, diz um policial da Pacaraima.

 

Nas redes sociais, que vem sendo monitoradas pela polícia, se multiplicam moradores exaltados reclamando da presença dos venezuelanos. Alguns acusam o Exército de proteger os imigrantes e descuidar dos brasileiros. Outros falam o mesmo dos serviços de saúde. Pacaraima passou três anos sem homicídios. Nas mídias sociais, alguns moradores dizem que os venezuelanos são responsáveis pelo aumento da violência na região e gozam de privilégios nos serviços de assistência social. Durante a semana, moradores realizaram uma carreata na cidade para exigir a proibição de novos acampamentos de refugiados. “O que se viu no final de semana em Pacaraima foi uma situação de comoção social”, diz o secretário Marcelo Lopes. “A divulgação de vídeos em redes sociais e a indignação de duas ou três pessoas não reflete a vontade da maioria da população”.

Plano mirabolante
Reforma de Maduro tira cinco zeros da moeda venezuelana, o bolívar, para tentar conter a inflação

Diante de uma inflação que deveria alcançar 1.000.000% no final deste ano, segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo de Nicolás Maduro apresentou, na semana passada, um pacote de medidas econômicas, que cortou cinco zeros da moeda venezuelana, o bolívar, e a atrelou ao petro, criptomoeda estatal vinculada ao preço do petróleo. Dessa forma, produtos que custavam 1 milhão de bolívares passam a valer 10 bolívares. O plano mirabolante, segundo Maduro, será o ponto de partida para uma grande mudança na economia local. Sua entrada em vigor representou uma desvalorização imediata de 96% da moeda venezuelana em relação ao dólar. A principal federação empresarial do país, a Fedecámaras, declarou que o plano do governo é improvisado, causa confusão e coloca a atividade econômica em risco severo.