RESTRIÇÕES Com cuidados redobrados, escolas começam a retornar com aulas híbridas: crianças em fase de alfabetização sofrem mais (Crédito:GABRIEL REIS)

Um ano de pandemia, de muitos acidentes de percurso e incertezas, e também de busca de saídas para um problema gigantesco. Pode-se dizer que a educação iluminista, formatada no final do século 18, sofreu uma ruptura histórica e definitiva em 2020. Estão todos desconcertados, intelectuais, educadores, pedagogos, professores, alunos com o novo cenário: as salas de aula, lugares fundamentais da transmissão de conhecimento no mundo contemporâneo, se tornaram virtuais para a maioria. Só isso basta para definir uma transformação sem precedentes. É uma inovação disruptiva, algo que transforma um serviço, uma atividade, um mercado para sempre.

Em todo o mundo, pelo menos 850 milhões de jovens viram sua vida estudantil mudar de uma hora para outra ou simplesmente desmoronar. No Brasil foram cerca de seis milhões de estudantes que sofreram os efeitos mais agudos da crise. Foi um período caótico para a educação, que levou todos os elos da cadeia do ensino a repensarem suas posições sobre os métodos e o futuro do aprendizado. E se há más notícias – no caso brasileiro, a grande massa de excluídos, que aumentou ainda mais – também há boas: estão sendo bem-sucedidos os colégios públicos e privados capazes de usar a força de sua comunidade para recuperar o prumo e redefinir suas práticas. Além disso, ficou claro que alunos com acesso à internet e lidam bem com a autonomia levam enorme vantagem na nova era da educação.

Já se sabe que o tempo perdido sem aulas presenciais teve efeitos especialmente graves no processo de alfabetização de crianças que ainda mal se acostumavam com o ambiente escolar e no aumento de evasão de alunos que terminaram o ensino fundamental e, sem escola, decidiram mergulhar no mundo do trabalho. Um estudo recém-lançado pela Unicef, em parceria com o Instituto Claro e produzido pela Cenpec Educação, mostrou um importante aumento do abandono escolar entre 2019 e 2020 no Brasil. Em outubro do ano passado, 3,8% das crianças e adolescentes de 6 a 17 anos (1,38 milhão de jovens) não freqüentavam mais a escola. Em 2019, essa taxa era de 2%. Segundo Júlia Ribeiro, oficial de Educação da Unicef no Brasil, os dados comprovam que o mesmo perfil de estudantes que já sofriam com a cultura do fracasso escolar não conseguiu se manter aprendendo com as escolas fechadas. “Precisamos olhar de forma específica para o público mais vulnerável”, diz Julia. “É necessário trabalhar os conteúdos pedagógicos para recuperar esses jovens cidadãos”.

De um modo geral, a pandemia tende a aumentar a desigualdade escolar no País e acentuar uma situação já bastante grave. Escolas de ponta conseguiram minimizar as perdas, mas aquelas que atendem a base da pirâmide social sofrem com problemas de difícil solução, como falta de método, de engajamento e de acesso a redes de comunicação. No caso brasileiro, há um problema adicional, que é a falta de coordenação nacional em uma estratégia de apoio para os estudantes mais pobres. O Ministério da Educação (MEC) deixou de lado qualquer possibilidade de articulação e não se move para definir políticas públicas para a educação. “O governo abandonou qualquer papel coordenador e isso deixou os entes por conta própria”, diz o diretor-executivo da ONG Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho. Por aqui se inverteram prioridades e as escolas ficaram no fim da lista das atividades essenciais e só começam a ser reabertas agora.

“Estudantes que já sofriam com a cultura do fracasso escolar não conseguiram se manter aprendendo com as escolas fechadas. Precisamos atender esse público mais vulnerável” Júlia Ribeiro, oficial de Educação da Unicef no Brasil (Crédito:Sergio Lima)

Um estudo encomendado pela Fundação Lemann para o Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados para o Brasil e África Lusófona, da FGV, simulou a perda de aprendizado dos alunos durante a pandemia e concluiu que eles deixaram de aprender mais em matemática do que em língua portuguesa e que a recuperação do tempo perdido depende de vários cenários. No mais otimista, os alunos aprenderiam através do ensino remoto tanto quanto no presencial, desde que realizassem atividades escolares, no intermediário, aprenderiam através do ensino remoto proporcionalmente às horas gastas com atividades escolares, e no pessimista, não aprenderiam com o ensino remoto. No pessimista, as perdas de aprendizado demorarão até quatro anos para serem compensadas. No otimista, o tempo poder ser bem mais curto.

Para recuperar as perdas, as escolas precisarão contar com alto nível de engajamento de pais, alunos e professores. No tradicional Colégio Visconde de Porto Seguro, em São Paulo, que tem 7,5 mil alunos, todas as classes foram divididas em três grupos, chamados bolhas, cada um com um terço dos alunos. Enquanto uma dessas bolhas está na sala, presenciando a aula do professor, as outras duas estão em casa, numa experiência remota, recebendo ensinamentos pelo vídeo. O vídeo, por sinal, se torna, de uma vez por todas, uma grande arma da educação, assim como o celular. O Porto Seguro, administra a Escola da Comunidade, com 1,5 mil alunos. Lá, foi o celular que salvou o ano de estudantes mais pobres. Mesmo que não tivessem computador, 100% deles tinham o equipamento ou podiam contar com o de seus pais. Mas um percentual grande era pré-pago, com limites para conexão. Para resolver o problema, a escola criou um aplicativo que permite o acesso irrestrito às atividades escolares.

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“Não existe escola sem compreensão do espaço coletivo. É hora de chamar a comunidade para resolver os problemas conjuntamente” Silmara Casadei, diretora-geral do Porto Seguro (Crédito:Divulgação)

Outro movimento da escola foi a eleição de comitês de pais, alunos e professores que se reúnem quinzenalmente para discutir questões do ensino e fazer sugestões para melhorar as práticas de aprendizado. Esse engajamento de todos está tornando muito mais fácil o caminho para recuperar as perdas do ano passado e se adaptar aos novos formatos de educação. De um modo geral, escolas democráticas, que discutem os seus problemas coletivamente, estão se saindo melhor durante a pandemia. “Não existe escola sem compreensão do espaço coletivo e agora é hora de chamar a comunidade para resolver os problemas conjuntamente”, diz Silmara Casadei, diretora-geral e pedagógica do Porto Seguro.

O Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (Ipea) produziu o estudo Acesso Domiciliar à Internet e Ensino Remoto Durante a Pandemia, e tem feito propostas para universalizar o acesso à internet. Esse é o calcanhar de Aquiles da inserção brasileira na nova educação. Seis milhões de estudantes brasileiros, da pré-escola à pós-graduação, segundo o levantamento, não contam com acesso à internet em banda larga em casa ou no celular.

“A principal saída é retomar o ensino presencial o mais rápido possível porque o ensino remoto tem limitações”
Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo da ONG Todos pela Educação (Crédito:Divulgação)

Estão impossibilitados, portanto, de acompanhar aulas e outras atividades online. Do total de alunos altamente prejudicados, 5,8 milhões estão no ensino público. “A principal saída é retomar o ensino presencial o mais rápido possível porque o remoto tem limitações”, afirma Nogueira Filho, do Todos pela Educação. “O ensino remoto não é a fórmula mágica para resolver nossos problemas”. De qualquer forma, a tecnologia se tornou muito mais importante para o aprendizado do que antes. E retomando as aulas com o ensino hibrido, as escolas promovem a inovação. É uma experiência que está só no começo e que pode se prolongar por meses ou anos. Sem saudosismo, devemos admitir que talvez nunca mais vejamos a antiga escola.


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