O processo da modelo e influenciadora digital Mariana Ferrer é um dos maiores disparates da Justiça brasileira nos últimos tempos. Mariana afirma ter sido estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha no clube de praia Cafe de La Musique, em Santa Catarina, em 2018, quando tinha 21 anos. No julgamento do caso, na semana passada, porém, houve uma inversão completa de valores e uma provável vítima de violência sexual passou a ser acusada de ser uma mentirosa contumaz. Aranha foi inocentado e a dignidade da modelo ultrajada: mais uma vez os operadores do direito colocaram uma mulher estuprada na posição de culpada. O caso chocou o País depois que o site The Intercept divulgou imagens da jovem sendo humilhada durante a audiência.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

“As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação” Gilmar Mendes, ministro do STF

No vídeo, a vitima é ofendida ininterruptamente pelo advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que chegou a afirmar “peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você” enquanto utilizava fotos pessoais da jovem para questionar o estupro. Ninguém o repreendeu. A vítima afirma que era virgem até então, fato também contestado por Gastão. “É seu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem”, disse o advogado do réu. De novo, ninguém o repreendeu. Sem defesa e atordoada pelas ofensas a jovem começa a chorar. “Gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, estou implorando por respeito, no mínimo”, clamou para o juiz Rudson Marcos. “Nem os acusados, nem os assassinos são tratados como estou sendo tratada”, completou. Criticado por especialistas, o caso está sendo investigado por órgãos do direito, que cobram explicações do advogado e de Rudson Marcos.

“Com relação ao caso da Mariana Ferrer é inadmissível o tratamento dispensado à vítima na audiência por parte de todos os operadores do Direito, dos quais é exigido o dever de urbanidade, merecendo evidente apuração dos fatos éticos”, afirma a advogada criminalista Roselle Soglio. O show de horrores continua com a atuação dos promotores do Ministério Público que deveriam defender a ré, mas se tornaram algozes. Durante o processo. Alexandre Piazza, o primeiro promotor do caso, denunciou André Aranha por ‘estupro de vulnerável’ baseado em provas como material genético dele encontrado no vestido de Mariana. A defesa do réu recorreu e derrubou a liminar em segunda instância. Pouco tempo depois, Piazza deixou o processo de forma voluntária para assumir outra promotoria, sendo substituído por Thiago Carriço de Oliveira. O novo magistrado considerou jurisprudências exibidas pela defesa e apontou falta de dolo (intenção) do acusado. Mariana alegou que foi dopada na noite do estupro, mas a defesa do réu rebateu a acusação afirmando que não há indícios de que a vitima estivesse fora de si. Gastão aponta que “foi atestado que ambos estavam com capacidade cognitiva em perfeito estado”, segundo exames da pericia. Para o advogado criminalista e professor do Mackenzie, Rodrigo Felberg, é um ato criminoso “manter conjunção carnal com uma mulher alcoolizada ou drogada, sem capacidade de resistência”. “Ainda que não haja violência, é estupro de vulnerável”, disse.

O site The Intercept ‘traduziu’ a justificativa do promotor Thiago de Oliveira usando a expressão ‘estupro culposo’, quando não há intenção de estuprar. Embora o termo tenha se popularizado, ele não foi usado pelo promotor, visto que não existe no Código Penal. No caso, a “ausência de provas contundentes” determinou a inocência do réu. Para diversos juristas, o caso deve ser centrado no drama da vitima. Nada justifica o desrespeito desferido por Claudio Gastão, tampouco a omissão do juiz Marcos. A Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) abriu um procedimento disciplinar para tratar da conduta do juiz durante a audiência, já que ele permitiu que o advogado Cláudio Gastão humilhasse Mariana Ferrer. Além disso, o tratamento foi criticado por órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e até pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras”, disse via Twitter. O criminalista Rodrigo Felberg ainda acrescenta que “ se a audiência estivesse sendo presidida por uma juíza a vítima não teria sido tratada daquela forma”. O caso está sendo analisado por diversos órgãos públicos, mas, por enquanto, a decisão de inocentar André Aranha não mudou.