Marlene Engelhorn conta que sua visão de mundo era como a de um cavalo arreado, com viseiras nas laterais da cabeça, que o obrigavam a olhar só para frente. Quando entrou na faculdade, para estudar alemão porque gostava de ler, a austríaca percebeu que o mundo era bem diferente fora da mansão e da abundância em que vivia. Constatou que “privilégio, você não enxerga o quanto tem”. E levou um susto com a imprensa italiana e espanhola divulgando que, como herdeira da BASF, teria direito a um patrimônio de 4 bilhões de euros, equivalentes a R$ 22,7 bilhões. Apressou-se em desmentir e disse que o montante é em milhões, e não em bilhões. E que não pretende abrir mão do dinheiro, não… mas porque quer distribuir a maior parte: “Não quero ser tão rica”.

Ao jornal catalão ARA, destacou: “Vou herdar uma quantia de dois dígitos em milhões de euros e quero redistribuir pelo menos 90%, de preferência por meio de impostos”. O entrave, para a austríaca de 30 anos, é que em seu país não existe cobrança de imposto sucessório nem sobre patrimônio. Por isso, “se não for possível, vou encontrar o meu próprio caminho”, garantiu.
De fato, essa fada-madrinha poderia viver tranquilamente com 10% de sua herança, mesmo que seja “apenas” em milhões.

Se o cálculo (em dólares) da revista Forbes for correto, a avó Traudl Engelhorn tem, sim, mais de R$ 20 bilhões acumulados, que iriam para a neta. São mais de 22 “Neymares” empilhados, tomando-se a informação da mesma Forbes, de que o jogador do PSG tem patrimônio de R$ 1 bilhão. Para se ter outra medida de comparação dessa fortuna, basta imaginar que, para toda a rede portuária e aeroportuária do Brasil inteiro, são R$ 29,4 bilhões previstos pela Lei do Orçamento de 2023, em recursos repassados ao Ministério da Infraestrutura — e isso porque o aumento será de 70% em relação ao ano passado.

Herdeira da Basf esconde valor de sua fortuna, mas propõe doar 90% dela
EM FAMÍLIA Os Engelhorn, com Friedrich (à frente), fundador da BASF em 1865. Seu bisneto Peter casou-se com Traudl, que se tornaria a avó da herdeira Marlene (Crédito:Divulgação)

Marlene Engelhorn chiou com os 4 bilhões de euros divulgados pela imprensa, mas não revelou cifras exatas. Se realmente o montante for em milhões, como disse, e em dois dígitos, é possível especular. Pelo maior número de dois dígitos, seriam “99” milhões de euros, o equivalente a mais de R$ 550 milhões (ou mais de 40 mega-senas no Brasil). E de fato já agora, aos 30 anos, poderia viver muito bem com R$ 55 milhões — os 10% do total. Se estiver falando do menor número de dois dígitos, ou “10” milhões de euros, nada mal também: teria R$ 5,7 milhões — os 10% de R$ 57 milhões.

No Brasil, aplicados em renda fixa, os R$ 22,7 bilhões da avó — de acordo com os jornais europeus — renderiam R$ 250 milhões por mês. O que também pode parecer pouco, se levada em consideração a lista das 10 maiores fortunas do país, segundo a Forbes: Jorge Paulo Lemann lidera, com patrimônio de R$ 72 bilhões. O mais midiático, Luciano Hang, já tem mais que a herdeira da BASF: é o sétimo colocado, com R$ 24,5 bilhões. Com esse dinheiro, se poderia construir 170 mil casas populares, na média de 100m2, abrigando quase 700 mil pessoas — ou mais que a população de uma cidade como Florianópolis, por exemplo.

Marlene Engelhorn garante que herdará “apenas” dois dígitos em milhões (e não bilhões) de euros; e que ficará com apenas 10% deles, doando o restante

Da cerveja à herança

Mas se esses são cálculos imaginários, o “pior dos piores” cenários para Marlene Engelhorn são R$ 5,7 milhões, que poderia investir conservadoramente e receber R$ 65 mil por mês (quase 50 vezes a renda média do brasileiro em 2021, de R$ 1.353, segundo o IBGE).

É por perceber essa desigualdade mundial que a austríaca diz que não ficará com 90% do que herdar, como afirmou ao ARA. Marlene é descendente do alemão Friedrich Engelhorn, filho de mestre cervejeiro que se tornou ourives, trabalhou com gás engarrafado para iluminação de ruas e se tornou industrial. Com sócios, em 1865, fundou a Badische Anilin & Soda Fabrik (BASF), que se tornaria uma gigante global do setor químico. Quando informada do quanto herdaria da avó Traudl (que se casou com Peter Engelhorn, bisneto de Friedrich), se deu conta de que a quantia parecia “enorme”.

Ficou com raiva, queria falar sobre o assunto, porque “não parecia justo ter tanto dinheiro”. Em fevereiro de 2021, já havia enviado uma carta aberta a quem se dizia incomodado com os baixos tributos cobrados dos bilionários, que foi assinada por “60 pessoas ricas de língua alemã”. Foi o início do “taxmenow” (algo como “taxe-me agora”), movimento pela majoração da tributação de milionários e bilionários em favor da distribuição de riqueza, e que já reúne alguns dos maiores herdeiros do planeta.

Para Marlene Engelhorn, são exceções aqueles que saem do nada e conseguem juntar grandes fortunas. Os muito ricos nasceram assim, diz, ou já tinham privilégios, como seu avô, “branco, meia-idade, europeu e rico”. Ela não acredita que grandes problemas possam ser resolvidos apenas por uma pessoa ou instituições filantrópicas familiares e sim pelos Estados. Assim, serviços públicos devem ser o destino dos milhões, ou bilhões, da herdeira-fada-madrinha.