Ao contrário do que previram inúmeros analistas, a União Europeia (UE) dá sinais de que pode sair da pandemia mais forte do que entrou.

Depois de negociações delicadas e críticas severas à líder alemã, Angela Merkel, a crise sanitária acabou unindo os 27 países-membros, apesar das resistências entre as nações mais ricas e as que enfrentam graves crises fiscais.

Com isso, o bloco contraria a maior parte dos críticos, incluindo os partidários do Brexit, o presidente Donald Trump e os antagonistas históricos que nunca apostaram que ele pudesse se manter unido por tanto tempo, com tantas diferenças.

Ao invés de se tornar o catalisador da separação, o coronavírus acabou criando um cenário propício para uma renovação da aliança histórica entre França e Alemanha, apesar das diferenças entre o presidente Emmanuel Macron e a chanceler Angela Merkel.

O resultado foi um acordo bilionário que pode salvar não apenas a União Europeia, mas também o conceito de blocos econômicos e a própria ideia de globalização, que é contestada por populistas e nacionalistas em vários países e definha com a crise de órgãos multilaterais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC) — virtualmente paralisada.

Ao fechar a proposta de reconstrução da economia europeia após a pandemia, os líderes das duas maiores economias da UE conseguiram um acordo que parecia irrealizável há poucas semanas.

O plano acertado pela Comissão Europeia, cúpula do bloco, prevê 750 bilhões de euros para financiar a retomada econômica no continente, sendo que 500 bilhões serão repassados aos países-membros a fundo perdido, desde que atendam às prioridades do bloco: modernização da economia, avanço no processo de digitalização e redução de emissões de carbono.

Outros 250 bilhões de euros serão repassados para o financiamento de 11 países com dificuldades fiscais, que não têm condições para obter crédito. Tudo isso com o objetivo de manter a coesão e fazer frente às negociações com as duas maiores economias globais, EUA e China.

Essa nova etapa é mais uma vitória sobre as sucessivas dificuldades que a União Europeia enfrentou. A crise econômica da Grécia quase fez o país sair do bloco em 2015. A primeira secessão ocorreu afinal este ano, com o Reino Unido. Na esteira da pandemia, líderes da Itália e a Espanha também pregaram a saída da União Europeia. As nações mais endividadas pediram o relaxamento nas regras estritas de disciplina fiscal, defendidas especialmente pela Alemanha e Holanda, enquanto os países com economia mais robusta não desejavam pagar a conta pela crise. O final feliz se deve ao fato de Macron ter se tornado o principal interlocutor dos países latinos (França, Itália, Espanha e Portugal) e de Merkel ter flexibilizado sua posição, endossando um mecanismo que permite à UE contrair empréstimos.

“Com a união dos países latinos, Macron, sempre visto como um burocrata, conseguiu se reinventar. Fez frente à respeitada liderança de Angela Merkel”, avalia Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrape) e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford. Já a chanceler alemã, segundo ele, mostrou que a flexibilidade pode levar o grupo a ganhar força para fazer frente às hegemonias chinesa e norte-americana no pós-pandemia. “Isso ficou tão claro para todos na União Europeia que até líderes de extrema-direita estão abandonando a bandeira de saída do bloco”, diz.

“O Estado-nação sozinho não tem futuro. A Europa precisa agir unida. A Alemanha só ficará bem se a Europa estiver bem” Angela Merkel, premiê alemã

A traumática saída do Reino Unido já havia mostrado a necessidade de união para que não se perdesse o protagonismo nas relações comerciais — e acelerou o acordo Mercosul-União Europeia, por exemplo. Além disso, o Brexit permitiu a ascensão da França como a segunda maior força do grupo. Essa renovação do pacto europeu, por outro lado, pode acabar se tornando um problema para o Brasil. Será mais difícil negociar com uma Europa mais exigente em questões ambientais e sanitárias, áreas em que sempre foram duros, na opinião de Alencastro.

Volta por cima

Para Merkel, o que poderia significar seu enfraquecimento acabou se tornando uma volta por cima. A chanceler não só continua sendo a líder confiável para os alemães, como também fortaleceu sua liderança para os europeus em geral. Ao firmar o novo plano financeiro, ela transformou as possibilidades europeias e mostrou que fará o que for preciso para não deixar a UE falir, na visão do influente colunista do Financial Times Martin Wolf. Em sua avaliação, a Covid-19 atingiu os membros da UE de modo desigual, em termos de mortes e consequências econômicas.

As previsões mostram que o Produto Interno Bruto (PIB) italiano, por exemplo, encolherá 11%, ante os 7% da Alemanha. “Somente contra esse pano de fundo perigoso se pode compreender a proposta dos líderes da Alemanha e da França, no que a Comissão Europeia chama de UE da Nova Geração”, afirma Wolf. Internamente, Merkel acenou aos alemães com um pacote de estímulos da ordem de 130 bilhões de euros, que garante dinheiro para as famílias com crianças, cortes de impostos e incentivos a carros elétricos, entre outras itens.

O ministro da Economia, Peter Altmaier, chamou o plano de “maior programa de estímulos de todos os tempos”. Na prática, ele anuncia o fim do período de austeridade na Alemanha e reafirma a força da chanceler, que recuperou sua popularidade. Isso coloca em dúvida sua despedida do poder, marcada para 2021. Será que vão deixá-la sair?