CUIDADO A UBS da aldeia está bem equipada e consegue atender 60 pacientes por dia (Crédito:Divulgação)

Os povos indígenas historicamente têm menos acesso ao sistema de saúde nacional. Isso acontece por vários motivos. Um deles é o fato de muitos desses povos ocuparem áreas remotas. Outro é o menosprezo étnico a respeito da cultura dos índios, que é multifacetada, rica em elementos e especificidades, mas que acaba sendo estereotipada. Sempre lhes faltaram profissionais de saúde, atenção básica médica e hospitais próximos aos seus territórios. Esse ano, o quadro ficou pior. Os povos indígenas foram frontalmente atingidos pela pandemia do novo coronavírus. São cerca de 150 grupos afetados e mais de 800 óbitos, em todo Brasil. A maioria das vítimas são pessoas idosas cujo conhecimento fará falta e não será transmitido de geração para geração. A região do Xingu, no Mato Grosso é um território demarcado que abriga 109 povos diferentes e quase todas foram atingidas severamente pela doença, mas houve um diferencial de sucesso contra a pandemia: a aldeia Ipatse dos Kuikuros.

SAÚDE A médica Giulia e o enfermeiro Kadmiel: sucesso no combate à Covid-19 (Crédito:Divulgação)

Senso de coletividade

Desde 2016, um grupo formado por pesquisadores, antropólogos, arqueólogos, artistas e amigos dos Kuikuros, denominado Amazon Hopes Collective, se reúne para melhorar a vida desse povo através de tecnologias digitais. Em março, mês de chegada da Covid-19, esse coletivo desenvolveu, sob a liderança do cacique Afukaká Kuikuro, uma estratégia para enfrentar a pandemia, que começou com o treinamento de agentes de saúde da comunidade para saber lidar com a doença e se comunicar com as lideranças. Kauti Kuikuro era agente de saúde e após treinamento se tornou técnico de enfermagem direcionado a cuidar de pacientes com a Covid-19. “Juntamos todos no centro da aldeia e, sentados no chão, conversamos sobre a pandemia”, conta. Atuando como uma única equipe, as lideranças indígenas, os pajés e os profissionais de saúde estão vencendo a batalha contra vírus, com apenas 100 testes positivos, num universo de 400 pessoas.

Esse senso de coletividade e organização permitiu unir o conhecimento técnico científico, a consulta médica e o tratamento medicamentoso, ao conhecimento ancestral, em torno da assimilação do coronavírus. Além de monitorar diariamente casas e pacientes, os Kuikuros mudaram alguns hábitos e reforçaram outros, como a pajelança, os rituais de cura e o uso de raízes tradicionais para chá. Mais um fator importante foi o monitoramento de viagens e de indígenas sintomáticos. “A partir desse ponto, adaptamos um aplicativo para monitorar pessoas que vivem na aldeia”, conta Bruno Moraes, arqueólogo que faz parte do coletivo. Esse monitoramento cobre todas as aldeias. “Sabemos o estado de saúde dos 400 pessoas”, afirma Moraes. Como a maioria dos indígenas tem celular, o sistema aponta quem sai e quem entra na aldeia. Além disso, foi instalada numa oca da aldeia Ipastise, referência para as outras aldeias da região da mesma etnia, uma Unidade Básica de Saúde equipada para o tratamento da Covid-19.

A médica de família Giulia Balbao chegou à aldeia Ipatse em julho, contratada pela Associação Indígena Kuiruko Alto Xingu em parceria com o Projeto Xingu da Universidade Paulista de Medicina. Segundo ela, tudo que acontece na aldeia foi pensado, desenvolvido e implementado com antecedência. “Por isso conseguimos preservar a vida dessas pessoas”, pontua. A médica acredita que o principal pilar para que a estratégia funcione é o fato de haver em cada aldeia um profissional de saúde indígena cuidando das pessoas. No dia a dia, Giulia presta atendimento local e por rádio, para orientar maior quantidade de pessoas e, se necessário, vai até o doente. A forma de organização horizontal indígena se mostrou altamente eficaz no combate a Covid-19. Talvez se todo o País tivesse seguido o mesmo modelo, não estaríamos perto de chegar ao número escabroso de 140 mil mortes.