Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos quase como um monarca absolutista. Como ele imaginava eternizar-se no poder, seu velório reproduziu fielmente seus desígnios. O corpo permaneceu acomodado na cadeira presidencial, de onde ele nunca esperava ter saído, vestido com o uniforme de gala e decorado com uma camada protetora de medalhas. Há, no PT, quem vislumbrasse um destino parecido para Lula. Talvez, por isso, o partido não tenha se preparado politicamente para a saída de cena de seu maior líder. Nem ele mesmo. Acreditando-se onipotente, Lula jamais se preocupou com o momento do adeus. Agora, preso, Lula experimenta o pior dos infortúnios. Não o que vitimou García Moreno, mas um bem mais doloroso: a morte política em vida, acompanhada da débâcle do projeto de poder idealizado por ele. Podia ter sido diferente. Adaptando Michel de Montaigne, se só pode ter existido um meio de entrar na vida pública, havia mais de cem maneiras de se despedir dela. Lula encontrou a pior: condenado e preso, inapelavelmente, em tempos democráticos. A era das regalias do poder findou no histórico 5 de abril, dia em que o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Criminal do Paraná, expediu a ordem de prisão – coincidentemente na mesma data em que Lula confirmava oficialmente sua candidatura ao Planalto, em 2002, embalado pelo espírito da esperança que venceria o medo. Nos últimos dias, a esperança que mobilizou o povo brasileiro e o levou novamente a ocupar as ruas foi outra. A de que a impunidade, ao fim e ao cabo, não prevaleceria. Aconteceu. A esperança triunfou sobre a corrupção e constituiu um grito de alerta para toda a classe política: a prisão de Lula pode representar um divisor de águas no Brasil. Se a concessão do habeas corpus ao petista colocava a pique a Lava Jato, a prisão do ex-presidente confere uma nova dimensão à operação. Lula puxa a fila de poderosos à cadeia. Na sexta-feira 6, Paulo Preto, operador de propinas do PSDB e ex-diretor da Dersa denunciado em 2010 por ISTOÉ, amargou o mesmo destino do ex-presidente petista. Outros poderão vir de roldão. As instituições, enfim, se apresentam revigoradas como nunca antes.

Eduardo Knapp/Folhapress

As quase onze horas de julgamento do habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF) contaram os últimos momentos da ruína do líder de massas. Um líder surgido e lapidado nos escombros da ditadura militar sob as promessas de emprestar ao terreno da política o frescor de novas práticas, mas que fez o inverso, traindo os que nele acreditavam. Um líder que, ao alcançar o Planalto, se refestelou despudoradamente nos vinhos caros, nos jatinhos e nas demais mordomias que só o poder é capaz de proporcionar. Um líder que, atraído pelos atalhos fáceis do poder, passou a viver de obséquios, e se beneficiou pessoalmente do produto da corrupção – e o estendeu aos seus familiares. No plano político, fez picadinho do manifesto de fundação do PT. Aliou-se sem corar a face a todas as raposas políticas responsáveis pelos métodos que jurava combater.

No histórico 5 de abril, o juiz Sergio Moro mostrou que a Justiça funciona no País

Apertou a mão de Paulo Maluf, uniu-se à banda podre do PMDB e casou de papel passado com a elite que dizia enfrentar. Na verdade, o que se descobriria mais adiante, é que Lula apenas cozinhava em fogo brando o corolário farsesco embutido no discurso pueril, repetido como ladainha em procissão por ele, segundo o qual, aos 14 anos, “não roubava maçãs para não envergonhar a mãe”. William Wordsworth, um poeta romântico e naturalista inglês, dizia que “o menino é o pai do homem”. Só que o homem Lula envergonhou o menino Luiz Inácio, que envergonhou o País, ao ser enredado, como protagonista, no maior escândalo de corrupção do planeta desbaratado pela Operação Lava Jato.

De A até Z na cadeia

Como um dos últimos atos de sua tragédia pessoal, o petista ainda tentou transformar o STF no palco de um grande conchavo, não apenas para livrá-lo da cadeia, mas para salvar também uma leva de corruptos. Em vão. Por seis votos a cinco, o STF negou na quarta-feira 4 o pedido de habeas corpus. Tratou-se de um momento ímpar na história do Brasil. Em 1521, o rei de Protugal D. Manuel editou as chamadas Ordenações Manuelinas, um compêndio normativo que, dentre outras regras, determinava o modo como uma pessoa podia ser presa. Os nobres e altos clérigos, por exemplo, só poderiam ser detidos por ordem real.

Processos contra fidalgos, cavaleiros e altos funcionários públicos eram obrigatoriamente submetidos à Corte e as prisões somente ocorriam com a autorização do rei. O povo em geral dependia da Justiça comum. O Judiciário era a cidadela de defesa do corporativismo e da hierarquia dos direitos. O Supremo subverteu essa lógica. E indicou que a Justiça voltou a funcionar no País. O ministro Gilmar Mendes não poderia ter sido mais explícito, antes da apreciação do HC de Lula: “Se alguém torce para a prisão de A, precisa lembrar que depois vem B e C”. O alfabeto agradeceria se todos os criminosos, de A a Z, também fossem mandados para trás das grades. É o que a sociedade aguarda ansiosamente agora.

Lufada de ar fresco 

Ao mostrar a Lula que a lei vale para todos, e ninguém deve pairar acima dela, a maioria do colegiado do STF abriu um clarão na densa trilha de um novo caminho para o País, com novas práticas políticas, o arrefecimento do “nós contra eles” e o esvaziamento de posturas mais radicais. Na verdade, o Brasil sem Lula representa uma lufada de ar fresco na política nacional: sai de cena a lógica meramente marquetológica, baseada em estratégias sobre como derrotar Lula ou o seu candidato, e entram a necessidade quase imperativa de propostas concretas para o País, sobre como tirá-lo da crise e recolocá-lo da rota segura do crescimento econômico, sem esquecer da desigualdade social.

Há 40 anos, não saíamos do mesmo lugar, como se a política nacional andasse em círculos. Desde o início da redemocratização após a ditadura, tudo parecia girar em torno da expectativa do poder pessoal de Lula. O petista foi protagonista de todas as eleições presidenciais brasileiras. Ora as forças uniram-se para derrotá-lo, ora para ungi-lo ou para embalar o candidato apontado por ele. Com o petista na cadeia, o País desperta sem esse fator que regeu as nossas transformações em quatro décadas. Ainda que siga com alguma capacidade de interferência, os movimentos de Lula estarão significativamente limitados. Pela primeira vez, não será ele um dos protagonistas da disputa eleitoral e dos destinos políticos do País.

Eraldo Peres

Não foi sempre assim. Nas últimas quatro décadas, Lula serviu como uma bússola da política nacional. Em meio ao regime militar, durante as graves do ABC, o petista foi considerado um adversário mais ferrenho do que muitos dos clássicos inimigos da ditadura, como Miguel Arraes e Ulysses Guimarães. Fundador de um PT que ainda engatinhava, soube alimentar, durante a campanha das Diretas-Já e o governo José Sarney, uma dubiedade em que era tratado, pelo resto da oposição, ora como potencial aliado, ora como virtual adversário. Saiu da primeira eleição direta, em 1989, como uma grande força política, sofreu duas duras derrotas eleitorais, mas ressurgiu como uma fênix para dois mandatos consecutivos e a ascensão a mito. Em 2010, elegeu a sucessora e o resto já é história.

Com a prisão de Lula, o clima do “nós contra eles” tende a arrefecer durante as eleições

Na quinta-feira 5, a cúpula do PT já estava reunida para avaliar como se portar diante da decisão de Sergio Moro. Ali, o partido já imaginava transformar o ato de prisão de Lula em mais uma encenação destinada a dourar a já surrada narrativa de vítima. No campo jurídico, ainda resta uma expectativa quanto ao pedido de liminar impetrado por Antonio Carlos Almeida Castro, o ínclito Kakay. O recurso, – na verdade, mais uma entre tantas chicanas jurídicas –, pede o julgamento de duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que questionam a decisão do STF de 2016 em favor da prisão após condenação em segunda instância. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, vem se negando a votar as ADCs. Não enxerga razão para um cavalo de pau no entendimento da Corte, em pouco menos de dois anos. O pedido de liminar embute risco, pois foi parar nas mãos de Marco Aurélio Mello, um dos ministros integrantes da linha de frente da operação salva-Lula.

Gabriela Bilo

Conhecido pela linguagem cáustica com que apimentava seus votos, o ex-ministro do STF Ayres Britto dizia que “há quem chegue às maiores alturas para cometer as maiores baixezas”. Foi o que Lula fez, e agora paga por isso. É o que se espera que Marco Aurélio e os demais não façam.