A morte é feia.

Alain Delon era lindo na juventude, e ainda se mostra agora, passado o tempo, um senhor dotado de glamour, charme e traços fisionômicos bonitos aos 86 de idade. É homem vivido e experiente nas alegrias e tropeços da fama, dos desejos, dos amores e da riqueza, recuperado de um acidente vascular cerebral e de uma cirurgia cardíaca. Gosta de champagne e da companhia de cães. Anda de bengala, mas nele tudo lhe dá um ar de elegância. Rostos lindos envelhecem, e em Alain Delon ficaram todas as pistas de que ali, um dia, a beleza o esculpira. Ele, quando jovem, jamais suportou a ideia de que um dia envelheceria. Dizia, então, precoce e narcisicamente preocupado: “maldição! O rosto muda”.

CASAL Nathalie e Alain, no Rio de Janeiro: ela também optara pelo suicídio assistido devido a um câncer de pâncreas, mas morreu antes do procedimento (Crédito:Arquivo / Agência O Globo)

A morte é antiestética.

Esteticamente inigualável na arte do cinema, o ator franco-suíço Alain Fabien Maurice Marcel Delon brilhou nas telas em filmes como O Sol por Testemunha, de 1960, O Leopardo, de 1963, A Piscina, realizado três anos depois. Agora, Alain Delon vai morrer, com estilo e ao seu estilo: senhor de si e de seu destino. Não cabe a nós, portanto, julgarmos no campo da moral a sua opção, não cabe a nós julgarmos no dualismo do certo ou do errado a sua escolha. Ele escolheu, e pronto. Ele escolheu, ainda que se observe em seus olhos, vez ou outra, um deslustre de depressão. Ele escolheu o método designado suicídio assistido, sutilmente diverso da eutanásia, já que na Suíça, país em que mora, tal procedimento é legalmente permitido. A sua escolha é perturbadora, isso é verdade, porque Alain Delon não é um paciente terminal. Está optando por uma forma filosófica de morrer? Ou será que é porque o rosto que já foi símbolo sexual envelheceu? A rigor, nem doente é. “O mundo atual não me interessa mais”, lamenta-se ele. O ex-ator aposentou-se em 2017, e apesar dos queixumes está em plenas condições de se autodeterminar. Vinha reiterando o seu desejo de dar esse derradeiro passo, sem açodamento nem titubeio: “é a coisa mais lógica e natural a se fazer a contar de certa idade. A pessoa tem o direito de sair tranquilamente, sem passar por hospitais, injeções e todo o restante”. O filósofo Marcelo Perine, da PUC de São Paulo, endossa a tese: “a morte de fato é feia. Pode-se, no entanto, fazê-la minimamente digna evitando chegar ao ponto da perda da autonomia”. A atriz Nathalie Delon, primeira esposa do ex-ator e com quem teve o filho Anthony, também optara por tal rumo para finalizar a vida que a traíra com um câncer de pâncreas, porém morreu em janeiro de 2021, antes do procedimento.

É justamente Anthony quem herdou dos pais a serenidade e encontra-se cuidando da burocracia do suicídio assistido ao qual o ex-ator se submeterá. Delon tem dito uma frase característica daqueles que são muito bem psicanalisados: “fui tão feliz como não se pode ser por toda a vida”. O ex-galã está sendo blasée perante a vida e a morte? Em sua opinião, que é a que vale, não. E na semana passada deu início às mensagens de despedida no Instagram: “espero que no futuro atores encontrem em mim um exemplo, no âmbito profissional e no dia a dia com derrotas e vitórias”. Na Suíça, apelidada de “turismo da morte” pelos que se opõem à abreviação da vida, e de “paraíso dos direitos individuais” pelos que a defendem, porque lá o Estado não se imiscui na trajetória dos indivíduos, a eutanásia e o suicídio assistido são bastante comuns – assim como o são na Bélgica, Holanda e em Luxemburgo. Na América Latina, a Colômbia os legalizou; Chile e Argentina discutem a possibilidade. E o Brasil?

Alain Delon caminha para a morte sem açodamento nem titubeio

No Brasil, a eutanásia e o suicídio assistido são temas fora de laicas e republicanas pautas legislativas, prevalecendo o princípio religioso de que a vida começa na concepção e não na formação do sistema nervoso central. Ou seja: no campo religioso, a eutanásia e o suicídio assistido são como o aborto, só que olhado de trás para frente, do fim para o começo da existência humana – e, mais uma vez, não cabem julgamentos morais e julgamentos de crenças, há mesmo de se respeitar os diversos posicionamentos de quem é a favor e de quem é contrário. Também entre médicos há gente pró e gente que os desaprova. Todas as opiniões merecem igual acatamento. Fica, é claro, a irrequieta franja de uma reflexão: em doenças paralisantes, progressivas e irreversíveis, na qual o doente depende de máquinas e de outras pessoas para tudo, embora o cérebro se mantenha lúcido, não teria esse doente, se desejasse, direito a escolher morrer? Como já dito, fica a reflexão.

O fato é que, no Brasil, o profissional de saúde que praticar a eutanásia ou o suicídio assistido poderá ser condenado por homicídio, omissão de socorro ou auxílio ao suicídio. “Se a equipe médica e a família decidem desligar os aparelhos porque a morte é inevitável e o quadro irreversível, isso não é crime”, diz Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da USP. “Se a ação for deliberada para acelerar a morte, todos que participaram poderão ser penalizados”. Como tantas outras leis, também essa é vaga e contraditória. Resumidamente, a escolha da própria morte, nos países que a acolhem, envolve três métodos. Eutanásia: por vontade do paciente, os medicamentos e os aparelhos são suspensos. Ortotanásia: deixa-se o paciente falecer naturalmente, apenas com sedativos para não sentir dor. Suicídio assistido: um profissional da saúde ou familiar fornece ao paciente um agente letal (geralmente cápsula), e é ele, paciente, quem tem, com as próprias mãos, de colocá-lo na boca e engoli-lo. Dessa forma Delon morrerá e quem lhe pousará nas mãos a substância fatal é sua filha, Anouchka. Mas Delon, repita-se, nem paciente é. Só envelheceu.