No famoso romance do escritor americano William Styron, publicado em 1979, a polonesa Sofia Zawistowka, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, é forçada a escolher entre seus dois filhos, Jen e Eva, qual deles seria exterminado pelos nazistas na câmara de gás. “A escolha de Sofia”, que dá nome a obra, se tornou um exemplo clássico que está sendo utilizado na medicina neste momento de caos provocado pela Covid-19, onde os médicos estão tendo que decidir entre a vida e morte. Nesse sentido, o ambiente hospitalar impõe diariamente aos profissionais de saúde complexidades de tratamento e cuidados específicos que podem não ter resposta pronta para esse dilema. Por isso, muitas entidades médicas estão criando protocolos para que os profissionais da saúde resolvam o impasse, sem quebrar a ética que exige que todos os pacientes precisam ser tratados em condições de igualdade, independente de sua situação social ou de seu estado geral de saúde. As normas técnicas estabelecidas nesse tipo de parâmetro existem também para evitar que as escolhas sejam subjetivas ou econômicas e se sobreponham na hora do profissional decidir quem e como será realizado o atendimento.

DUAS OPÇÕES Os médicos estudam como organizar a fila de internação dos casos graves da doença: as pessoas serão atendidas por ordem de chegada ou de acordo com os dados de comorbidade
e quadro de saúde de cada um (Crédito:Bruno Kelly )

De acordo com a OMS, 14% das pessoas diagnosticadas com Covid-19 desenvolvem a forma mais grave da doença, exigindo internação hospitalar e oxigenoterapia. Cinco por cento deles, necessitarão de ser atendidos em uma UTI. Entre esses últimos, a maioria vai necessitar de suporte em respiradores mecânicos. Por isso, nesse momento agudo da crise do coronavírus, em que a demanda por atendimento em UTI cresce, é cada vez mais difícil atender todo mundo ao mesmo tempo na UTI. Em Pernambuco, por exemplo, há uma fila de espera por leitos de UTI de dez dias. No último dia 29 de abril, haviam 186 pacientes esperando por esse tipo de leito. E os profissionais já estão adotando critérios técnicos para a escolha de quem vai primeiro para a UTI. Por exemplo, quem é mais jovem e tem mais chances de sobreviver ganha a preferência. No Rio de Janeiro, protocolo semelhante também já está sendo posto em prática.

“Em condições normais, essa discussão sobre quem deve ser atendido primeiro nem deveria existir” Lara Kretzer, médica intensivista (Crédito:Divulgação)

Prevendo o colapso do sistema de saúde nos próximos dias, associações médicas de terapia intensiva, emergencial, geriátrica e de cuidados paliativos, desenvolveram no dia 1º de maio um protocolo que permite organizar e priorizar quem primeiro terá acesso ao atendimento em UTI. O documento está embasado em critérios técnicos. Estabelece que os pacientes devem ser observados por uma comissão de saúde especializada em coronavírus. No momento da triagem, estabeleceu-se os critérios clínicos que dão uma pontuação ao doente. Quem atingir mais pontos terá menores chances de ir para a UTI. O primeiro item que os profissionais devem observar é a quantidade de órgãos nobres afetados e a gravidade apresentada, pulmão, coração, os rins, cérebro e o fígado, que são os mais afetados pela Covid. Na sequência, se o paciente apresentar doenças crônicas e degenerativas e o nível dessas comorbidades, como insuficiência cardíaca, enfisema pulmonar e câncer, as chances de chegar ao ventilador diminuem muito.

A médica intensivista Lara Kretzer explica que esse procedimento deve ser efetuado apenas em um momento crise: “não é um processo que deva ser aplicado em condições normais.”. Segundo a médica, o princípio que rege o protocolo é salvar o maior número possível de vidas. “Queremos salvar todas as vidas, mas não estamos no controle de tudo”, lamenta.

FILA ÚNICA

Outra hipótese que os médicos discutem seria a adoção da fila única. Ou seja, quem chega primeiro é internado primeiro. Mas, nesse caso, há um problema porque pode se estar dando lugar na UTI ao paciente que tem poucas chances de sobreviver, mesmo com esses cuidados intensivos.“Essa escolha vai levar a um menor número de pessoas salvas”, disse Kretzer. No caso da fila única, o médico sanitarista Gilberto Berguio Martin diz que o cenário ideal seria o intensificar o isolamento social para evitar que muitas pessoas precisem da UTI ao mesmo tempo. “Se isso fosse respeitado, não teríamos que usar protocolo ou essa escolha entre um e outro”, disse. Nesse aspecto, antes que os médicos se coloquem no lugar da polonesa Sofia Zawistowka, as pessoas deveriam se conscientizar que precisam respeitar as regras do isolamento social para se manterem afastadas da contaminação e não superlotarem os hospitais, que cada vez mais não disporão de UTIs para todo mundo.