CONSCIÊNCIA Chico Buarque decidiu eliminar a música Com açúcar, com afeto do repertório de seus shows por causa do elogio à mulher sofredora: atitude politicamente correta (Crédito:Divulgação)

O cantor e compositor Chico Buarque decidiu excluir definitivamente a música Com açúcar, com afeto, um dos seus maiores clássicos, do repertório de shows. Não foi por uma pressão imediata do movimento feminista ou por qualquer conteúdo aversivo da canção. Nem por uma cobrança social pela autocensura. Trata-se de uma espécie de precaução anti-cancelamento, de uma revisão crítica movida pela constatação de que a música caducou diante dos novos comportamentos e da evolução da condição da mulher. Composta em 1967, a pedido da cantora Nara Leão, que encomendou para Chico uma exaltação da fêmea sofredora no estilo de velhos sambas, como Ai, que saudades da Amélia, a música, embora seja ótima, hoje pode ser ouvida apenas como um elogio à submissão feminina. A situação que ela apresenta é típica de uma mentalidade do passado em que o homem saía para a rua e a mulher ficava em casa resignada, só esperando ele chegar depois da esbórnia.

Para Chico, que revelou a intenção de abandonar a música no documentário “O Canto Livre de Nara Leão”, ela não cabe mais nas suas apresentações. “As feministas têm razão, mas elas precisam compreender que naquela época não passava pela cabeça da gente que aquilo era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar Com açúcar, com afeto mais e se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”, disse o artista. É sabido que a canção já estava fora de seus espetáculos há muito tempo, desde 1986. Mas Chico marcou posição citando feministas em geral. E reforçou uma discussão sobre a cultura machista de diminuir, menosprezar ou demonizar a mulher, seguindo um caminho que vem sendo adotado por muitos outros cantores e bandas de refletir sobre o anacronismo de parte de suas obras.

Os Rolling Stones eliminaram a música Brown Sugar dos shows: violência contra a mulher negra (Crédito:Rob Grabowski)

Recentemente, os Rolling Stones também anunciaram que excluiriam de seus shows a música Brown Sugar (Açúcar Mascavo), lançada no álbum Sticky Fingers, em 1971. Nela, há referência a uma mulher vendida como escrava e sendo chicoteada por um velho feitor por volta da meia-noite. Alguém que ouve o barulho do chicote canta no refrão “Açúcar mascavo, como é que você tem um gosto tão bom”, em uma evidente sensualização da violência contra a mulher negra. Desde 1995, pelo menos, o vocalista da banda, Mick Jagger, via problemas na música, que romantiza a escravidão e reafirma estereótipos. Em uma entrevista para a revista Rolling Stone, ele declarou que “nunca a escreveria agora”. “Eu, provavelmente, me censuraria”, completou. Já o guitarrista Keith Richards demonstrou resistência à exclusão de Brown Sugar do repertório das apresentações, e disse que ela trata dos “horrores da escravidão”, ou seja, que é mais crítica do que politicamente incorreta. A decisão final da banda, porém, se alinha com a tendência geral de admitir erros do passado e atender demandas identitárias e alinhadas com uma visão histórica renovada, que não negligencia, por exemplo, o sofrimento de milhões de africanos trazidos à força para a América.

DEBATE Para a cantora de hip hop Livia Cruz, as críticas desproporcionais podem virar uma espécie de censura: não se deve responsabilizar o artista pelos problemas sociais

Chico não foi tão longe como os Stones na incorreção política em Com açúcar, com afeto, embora as duas músicas tenham açúcar como mote, mas percebeu que a canção tem problemas. “Não houve qualquer pressão do movimento feminista, o que deve ter acontecido é que ele deve ter ouvido das amigas que a música estava datada”, diz a blogueira feminista e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lola Aronovich. “Tem gente que pode ver a exclusão como uma espécie de autocensura imposta por valores culturais, mas é só uma decisão do artista. Há uma velha tática machista de criar falsas polêmicas em nome do feminismo para deslegitimá-lo”. Em 1942, quando, por exemplo, Ataulfo Alves e Mario Lago lançaram Aí, que saudades da Amélia, que se tornou um símbolo da mulher submissa, eles não poderiam imaginar que haveria uma profunda transformação social. Vinte cinco anos depois, na gravação de Com açúcar, com afeto, apesar da contracultura e da popularização das ideias progressistas, a condição feminina ainda era desigual e precária e a resignação e a passividade eram tratadas como virtudes. São músicas que retratam uma época. Mas o tempo passa e os artistas continuam refletindo sobre a mudança da realidade e são pressionados a rever politicamente suas obras, buscando uma correção, um ajuste e atualização de postura por causa da evolução mental de seu público.

Em geral, a decisão de cantores de excluir músicas de seus repertórios tem envolvido temas como machismo, racismo, homofobia ou estímulo à violência. Nos últimos dez anos, o movimento hip hop e os músicos de rap brasileiros, por exemplo, numa revisão crítica que começou bem antes de Chico Buarque e da MPB, têm discutido profundamente a questão do machismo e do preconceito nas músicas. Em 2017, o líder dos Racionais MC’s, Mano Brown, declarou que nunca mais cantaria determinadas composições suas da década de 1990, como Mulheres Vulgares e Estilo Cachorro. Em Mulheres Vulgares, Brown perguntava “Mulher, que tipo de mulher?/ Se liga aí: derivada de uma sociedade feminista/ que considera e diz que todos somos machistas”. Para justificar sua decisão, o rapper disse em uma entrevista que foi “criado de maneira machista, mas o mundo está mudando – e para melhor”. “Não podia continuar errado desse jeito. Não faz nenhum sentido o homem ser beneficiado só por ser homem, é injusto”, declarou.

Revisão no Rap

AUTOCRÍTICA O líder dos Racionais MC’s, Mano Brown, deixou de cantar várias composições da década de 90, como Mulheres Vulgares, por causa do conteúdo machista (Crédito:Divulgação)

Antes de Brown, em 2013, o rapper Emicida enfrentou críticas por conta de versos machistas na música Trepadeira, do disco “O Glorioso Retorno de Quem nunca esteve aqui”, na qual diz, por exemplo, que “Margarida era rosa, bela, cheirosa e grampola/Chamei de banquete era fim de feira/Estendi tapete mas ela é rueira/Dei todo amor, tratei como flor/mas no fim era uma trepadeira”. Diante dos ataques, Emicida se defendeu afirmando que a música “não é um manifesto de como eu percebo as mulheres”. “Isso gerou uma provocação muito importante para mim, de pensar e ajudar a ver um monte de coisa que, não é que eu não visse, mas que eu não dava a atenção que tinha que dar”, completou. Com o mesmo espírito revisionista, o rapper Criolo alterou em 2018 sua música Vasilhame, de 2006, e no lugar de “os traveco tão aí! Alguém vai se iludir” colocou “o universo ta aí! Alguém vai se iludir”. Já há tempos a palavra “traveco” se tornou inaceitável e ofensiva. A dupla Sandy e Júnior também alterou o final da letra de Maria Chiquinha por causa do conteúdo machista.

A cantora e compositora de hip hop Livia Cruz, que promove uma discussão sobre o lugar das mulheres no seu ambiente musical, acha que essas iniciativas de revisão histórica podem ser “uma faca de dois gumes”. “Acho importante que exista um debate sobre discursos que depreciam as mulheres, mas não podemos personalizar em um artista a responsabilidade por um problema social”, diz. “O maior problema é que a crítica é desproporcional e pode virar uma espécie de censura, além de levar a uma postura de cancelamento do autor. O rap é machista, o hip hop é machista, mas o mundo é machista.” Segundo ela, frequentemente a música pode estar promovendo uma crítica à condição da mulher submissa em vez de um elogio à submissão, como acontece em outra canção de Chico Buarque, Mulheres de Atenas. “Depende muito da interpretação”, afirma. Para Lívia, músicas não devem ser banidas ou censuradas, mas lembradas e incluídas no debate público.

Marchinhas banidas
Músicas carnavalescas são pelo pensamento politicamente correto

Divulgação

Se há um tipo de música que caiu no esquecimento por causa do pensamento politicamente correto é o das marchinhas de Carnaval. Nelas, historicamente, se destila todo tipo de preconceito de uma forma bem humorada, mas que nos dias de hoje se tornou inaceitável. Embora tenham sido compostas em outros tempos e sejam retratos de uma época, algumas delas se alimentam de ideias ultrapassadas e fora de lugar. Apesar de não estarem banidas ou proibidas soam anacrônicas e perderam a graça.

Na lista de músicas de Carnaval para serem esquecidas ou filtradas por um pensamento identitário entram clássicos da folia como Teu cabelo não nega, de Lamartine Babo (na foto abaixo), que tem vários versos racistas, ou Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão, ambas de João Roberto Kelly, consagrado autor do gênero. Na primeira, ele canta que Zezé “parece transviado” e em seguida lança o refrão “será que ele é, será que ele é” e “corta o cabelo dele!”. Na outra, lançada em 1981 e promovida pelo apresentador Chacrinha, fazia chacota das mulheres lésbicas com versos como “de dia é Maria e de noite é João”. São músicas que não dabem mais em uma nova ordem, mas que são documentos da história. Quando foram criadas elas só pareciam ingênuas e divertidas.