DITADORES Ao contrário de Donald Trump, o novo presidente americano vai endurecer a relação com autocratas como o norte-coreano Kim Jong-un

Joe Biden inaugura em 20 de janeiro uma nova era nas relações internacionais. Sua gestão servirá para conter forças nacionalistas que tentaram acabar com o consenso internacional em vigor desde a Segunda Guerra. O americano deixará para trás a política disruptiva e negacionista de Donald Trump. Restabelecerá os valores da democracia americana, fundada no equilíbrio de instituições e no controle dos governantes. É uma reviravolta que terá repercussões mundiais.

Com Biden, antes de mais nada, o populismo perderá força. E isso é um alívio para o planeta. Nunca a democracia pareceu enfrentar tantos riscos. Depois do fim da União Soviética e da liberação dos países do Leste europeu, parecia inevitável que o modelo consagrado na Europa e nos EUA de participação popular prevaleceria. Porém, os movimentos terroristas globais de inspiração religiosa, o crash financeiro de 2008 e o renascimento nacionalista negaram essa tese. O fracasso da “Primavera Árabe” e a regressão política no Oriente Médio, inclusive com a expansão do medieval Estado Islâmico, mostraram que os desafios ainda são enormes. E as ameaças não são apenas externas. Os extremistas mostraram que a democracia moderna não é vulnerável somente aos golpes de Estado tradicionais, mas pode perecer a partir de líderes que tomam o poder para minar as instituições por dentro — o que não se imaginava é que os próprios EUA seriam vítimas dessa ação, colocada em marcha por Donald Trump ao deslegitimar o processo eleitoral e negar sua derrota.

RIVALIDADE Disputa entre EUA e China é a maior questão geopolítica atual. Biden manterá a pressão contra Xi Jinping (Crédito:Jason Lee)

Enquanto os EUA voltam a irradiar valores democráticos pelo mundo, outras nações se debatem com o retrocesso. A Venezuela mergulha cada vez mais na tragédia humanitária causada por uma ditadura sangrenta. O líder esquerdista mexicano Andrés Manuel López Obrador e o homem-forte turco Recep Tayyip Erdogan surfam no populismo e evidenciam o risco de involução. Outros países ainda vivem um perigoso regresso nacionalista, como é o caso da Índia, o que ameaça a minoria muçulmana e o ideal multirracial pretendido pelos fundadores da nação. Num sinal positivo para a comunidade internacional, Biden não vai fomentar tiranos e ditadores como fez Trump com o norte-coreano Kim Jong-un e com o líder russo Vladimir Putin. O primeiro aproveitou isso para expandir seu arsenal nuclear. O segundo, para aprimorar sua guerrilha cibernética.

Em 2020, o Brexit foi confirmado de forma cabal pelo voto popular no Reino Unido e já se tornou realidade, mostrando que a globalização também está à prova. Essa tendência, porém, será arrefecida com a chegada do novo presidente americano. Ele vai romper com o isolacionismo dos anos Trump e reafirmar o multilateralismo. Com isso, organizações como a ONU e a Organização Mundial de Comércio voltarão a ter papel preponderante, o que aponta para um desenvolvimento mais equilibrado nos países em desenvolvimento e para menos radicalismos e conflitos globais. A formação dos grandes blocos econômicos, que parecia comprometida, volta à ordem do dia. A Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) avança e a União Europeia, que parecia ameaçada com a retirada do Reino Unido, provou-se mais uma vez decisiva. Manteve-se coesa no último ano com a atitude firme e decisiva da chanceler alemã Angela Merkel e do presidente francês Emmanuel Macron, que ampliaram os estímulos fiscais durante a pandemia aos países mais pobres do bloco. A força comunitária também impôs limites aos líderes populistas de direita da Polônia e da Hungria.

FORÇA Angela Merkel liderou a Europa na crise e pode rever a aposentadoria programada para setembro (Crédito:Michel Kappeler)

“A grande questão geopolítica atual é a relação entre EUA e China”, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da Faap. “Ela piorou muito em 2020, mas não necessariamente por causa do Trump”, afirma o especialista. Segundo ele, Biden tem sido mais agressivo com a China do que o próprio Trump. E o novo presidente vai levantar a questão de direitos humanos, criando mais pontos de atrito. Deverá manter a pressão contra o maior rival dos EUA pela supremacia tecnológica e econômica, mas não fará isso por meio de barreiras comerciais e ameaças, como ocorreu nos últimos quatro anos. O democrata vai recompor a rede de aliados históricos com essa finalidade. Europa e Japão, que foram criticados e alienados por Trump, devem se unir ao democrata para conter o expansionismo chinês.

Bolsonaro na mira

Outra inflexão na política americana vai afetar diretamente o Brasil. Biden vai reintegrar os EUA ao Acordo de Paris e priorizar a questão ambiental. Isso significa pressionar Jair Bolsonaro a reverter sua política mal disfarçada de desmatamento e ocupação econômica predatória na Amazônia e em outros biomas. Por meio do seu encarregado das questões ambientais, John Kerry, o futuro presidente americano vai propor uma ajuda financeira bilionária com o compromisso de contenção e controle internacional do desmatamento, sob risco de sanções econômicas. Como Bolsonaro implodiu essa mesma política de ajuda condicional adotada por países europeus como Alemanha e Noruega, a era Biden começará marcada pelo atrito com o brasileiro. Um problema agravado pelo fato de Bolsonaro nunca ter sido aliado de fato dos EUA, mas de Trump, além de ter se negado a reconhecer a vitória de Biden seguindo as teorias conspiratórias e mentirosas do presidente que se despede.

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“A derrota do Trump enfraquece o ambiente ideológico, inclusive no Brasil. Mas o trumpismo vai se manter “, lembra Poggio. As forças que levaram Trump ao poder permanecem na sociedade americana: a decadência econômica e industrial e as mudanças demográficas que tendem a relegar a um segundo plano a base do eleitorado do país, os brancos não escolarizados. A vitória de Biden foi um triunfo da união das forças de oposição que lutaram contra a ascensão do supremacismo branco, do racismo e do extremismo. O novo presidente está formando uma gestão mais diversa e inclusiva, abraçando movimentos como Mee Too e Black Lives Matter. Mas é importante que essa coesão permaneça e que mire o conjunto da população, respeitando opiniões contrárias, valorizando a negociação e abraçando um amplo espectro político. A união do Partido Democrata em torno de um líder moderado e que representava o establishment mostrou que é possível defender a democracia superando o radicalismo, inclusive o identitário. A conclusão vale para todo o planeta.

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