“Os EUA já devolveram 17 mil artefatos ao Iraque, mas sabemos que existem outros dezenas de milhares que foram roubados”
José Maria de Souva Neto, historiador (Crédito:Divulgação)

O Iraque recebeu dos Estados Unidos um artefato datado de 1.600 a.C. que contém um trecho da “Epopeia de Gilgamesh”, considerada a história literária mais antiga da humanidade, precedendo até mesmo a Ilíada e a Odisséia de Homero. O artefato é uma tábua de argila, onde um trecho do livro de Gilgamesh está gravado em escrita acádica, em caracteres cuneiformes. A escrita cuneiforme foi inventada na Suméria, onde hoje é o Iraque, em 3.000 a.C. A devolução ao Iraque faz parte de um esforço do Departamento de Justiça do governo americano em devolver milhares de artefatos saqueados dos museus iraquianos a partir da Guerra do Golfo de 1991. A tabuleta era exibida desde 2014 no Museu da Bíblia dos EUA, em Washington, e foi obtida ilegalmente a partir de um leilão na Christie’s. Na época, foi comprada pela empresa Hobby Lobby. Em 2017, a Hobby Lobby — que construiu o Museu da Bíblia — pagou US$ 3 milhões em multas do Departamento de Justiça dos EUA e admitiu ter comprado milhares de artefatos históricos iraquianos. A empresa alegou não saber que se tratavam de antiguidades contrabandeadas do Iraque.

“Os EUA já devolveram 17 mil artefatos ao Iraque. Mas sabemos que existem dezenas de milhares, uma quantidade gigantesca de peças, que foram roubadas e continuam no mercado ilegal”, diz José Maria de Souza Neto, professor de história antiga na Universidade de Pernambuco. Segundo ele, as piores fases da pilhagem do patrimônio iraquiano aconteceram em 2003, logo após a invasão americana, e durante a revolta do Estado Islâmico no norte do Iraque, entre 2015 e 2016. A história da tábua de argila devolvida na semana passada, ressalta o professor, é impressionante, pois se trata de um artefato raro. “Ela foi feita durante o período babilônico da Civilização Mesopotâmica, em 1.600 a.C. Existem poucas versões da Epopeia de Gilgamesh feitas na época babilônica”, explica.

Lacunas históricas

Não existe consenso entre os historiadores e arqueólogos se Gilgamesh, rei da cidade de Uruk, viveu de verdade, ou se foi um personagem mítico, criado por lendas do povo sumério. Houve um rei chamado Gilgamesh que governou em Uruk em 2.600 a.C. e pode ter sido o personagem histórico que deu origem ao livro. O interessante é que o livro narra que ocorreu um dilúvio que aniquilou parte da humanidade — o Noé sumério chamava-se Utnapistim. A civilização suméria foi a primeira da Mesopotâmia. Após entrar em colapso em 2.000 a.C., foi sucedida pela babilônica e pela assíria. A Suméria precedeu até Israel antigo. “A história de Noé é uma variação da história do dilúvio mesopotâmico”, afirma José Maria. O artefato devolvido ao Iraque foi encontrado por arqueólogos britânicos em 1852 nas ruínas do palácio do rei Assurbanipal. Esse rei, que foi o último da Assíria, viveu no século VII a.C. e criou a Biblioteca de Nínive, onde hoje é o Norte do Iraque. Após a morte do rei, o Império Assírio foi destruído pelos persas e acabou sendo a última civilização da Mesopotâmia. Vários fragmentos dos livros de argila podem ser vistos no Museu Britânico.