O Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) devem iniciar investigações para apurar irregularidades na Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária (Adaps). O órgão, criado em março de 2020 por Jair Bolsonaro, é alvo de suspeitas de nepotismo, fraudes em licitações e diversas outras falcatruas, as quais levaram toda a diretoria a ser afastada no começo deste ano, já sob o governo Lula. As irregularidades foram noticiadas pela revista “Piauí” no início deste mês.

O pedido de investigação encaminhado ao MPF foi feito pelo deputado federal Zeca Dirceu (PT). Para o parlamentar, as suspeitas que pairam sob a Adaps “informam o afastamento dos princípios constitucionais e comandos legais, agindo os representados em total desacordo com suas obrigações e finalidades para atender a interesses diversos do interesse comum, portanto, particulares”.

O parlamentar pede que os diretores da agência sejam responsabilizados, no mínimo, por improbidade administrativa.

Na Corte de contas, o pedido de investigação é do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado. “Ainda que o atual governo tenha se prontificado a corrigir os erros do passado, não se pode apagar as marcas que ficaram”, disse na solicitação encaminhada aos ministros.

Para ele, o caso “revelou um descalabro na saúde pública durante o governo Jair Bolsonaro relacionado ao Programa Mais Médicos diante da redução da Política Pública em possível desvio de finalidade”.

Uma agência com trajetória polêmica

A Adaps foi criada enquanto Luiz Henrique Mandetta ocupava o Ministério da Saúde. A nova agência tinha como um dos objetivos organizar e executar o Programa Médicos Pelo Brasil, criado na gestão bolsonarista para substituir o Mais Médicos, que ficou conhecido pela introdução de profissionais de várias nacionalidades – principalmente cubanos – em atendimento primário de saúde nas localidades mais carentes do País, uma das bandeiras Dilma Rousseff.

A iniciativa recebia críticas por mandar recursos milionários para a ditadura cubana enquanto os médicos do país que se mudaram para o Brasil recebiam salários modestos.

O Mais Médicos também era alvo de reclamações do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira, que não aceitavam a “concorrência” com profissionais estrangeiros assumindo postos que os médicos brasileiros não tinham interesse em ocupar.

A enrolada agência de Bolsonaro
O coronel Élcio Franco foi colocado na cúpula da Adaps (Crédito:Divulgação)
A enrolada agência de Bolsonaro
Alexandre Pozza: mãe em empresa contratada (Crédito:Divulgação)

História acidentada

Pouco antes de ser demitido do ministério, Mandetta havia colocado o então secretário de Atenção Primária à Saúde, Erno Harzheim, como presidente do Conselho Deliberativo da Adaps. Coube a ele a nomeação de funcionários de carreira do Ministério da Saúde para comandarem a instituição.

Assim, Alexandre Pozza, Soraya Andrade e Caroline Martins dos Santos assumiram funções na diretoria com a indicação de Harzheim. A Adaps, no entanto, ficou praticamente inoperante com a ascensão de Eduardo Pazuello ao Ministério da Saúde.

O novo ministro trocou também o conselho da entidade, colocando nomes como Élcio Franco e a médica Mayra Pinheiro nos cargos de presidente e vice, respectivamente.

Franco ficou conhecido por ignorar mais de 70 e-mails do laboratório Pfizer, oferecendo a vacina contra a Covid-19, enquanto Mayra ganhou o apelido de “Capitã Cloroquina” por defender o uso do medicamento ineficaz contra a doença que matou mais de 700 mil brasileiros.

A Adaps começou a operar de fato no final de 2021, quando o então ministro Marcelo Queiroga procurou destravar a agência para que ela pudesse auxiliar na emergência causada pela pandemia. O programa Médicos pelo Brasil foi lançado oficialmente apenas em abril de 2022.

Logo ao ser criada, a Adaps recebeu um aporte de mais de R$ 700 milhões, para dar andamento às atividades. Para que os trabalhos fossem realizados, porém, o órgão precisava contratar funcionários. Essa contratação foi feita por um processo de seleção executado entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022 pelo Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Distrito Federal.

O IEL, que faz parte do Sistema S, tinha como funcionária a mãe do então diretor, Alexandre Pozza. Só esse processo envolvendo o IEL já é considerado irregular, pois a Lei das Licitações proíbe a contratação de empresas cujos funcionários ou diretores sejam parentes de membros das instituições públicas responsáveis pelos acordos com o poder público.

Mas, como se isso não bastasse, várias das pessoas selecionadas tinham vínculos com a mãe de Pozza ou de outros funcionários da Adaps, além de funcionários do instituto. Os cargos oferecidos à época pagavam salários que variavam de R$ 11 mil a R$ 22 mil.

No ano passado, foi apresentada uma denúncia anônima ao Ministério da Saúde apontando as supostas irregularidades na contratação desses servidores. No entanto, nada ocorreu ao menos até a troca de governo, quando o Conselho Deliberativo da Adaps afastou a diretoria e indicou novos membros interinos para os cargos. A mudança foi realizada em março deste ano, já na gestão Lula.

Outro problema encontrado na Adaps diz respeito a pagamentos de salários duplicados a servidores da agência, cedidos pelo Ministério da Saúde. Entre os que teriam sido beneficiados estão os três diretores indicados no início da entidade, que faziam parte dos quadros do governo.

O caso já está sob investigação do Tribunal de Contas de União, que poderá determinar, entre outras sanções, a restituição dos valores pagos a mais aos cofres públicos.

Há também possíveis erros em contratos milionários, como o que definiu a empresa responsável por gerir o vale-alimentação e o vale-refeição dos funcionários da Adaps.

A Flash Tecnologia e Pagamentos Ltda foi contratada em caráter emergencial, por um período de 24 meses, podendo ser prorrogado por até 60 meses. No entanto, a Lei de Licitações determina que contratos emergenciais podem ter duração máxima de um ano.

MPF e TCu investigam

Mas nenhum desses problemas supera o que talvez seja o caso mais escandaloso entre os que serão apurados pelo TCU e MPF. Na Véspera de Natal, em 2021, o diretor Alexandre Pozza mandou uma carta-convite a seis empresas para o gerenciamento da carta de investimentos da Adaps, que chegava a R$ 232 milhões.

Poucos dias depois, no dia 3 de janeiro de 2022, já havia uma empresa contratada para esse serviço, a MazaInvest, com sede em Brasília.

Apesar do alto volume de recursos, nenhuma grande empresa do ramo participou da seleção. Além disso, a MazaInvest é dona de outra empresa com sede em Londres, na qual o irmão de Pozza, José Roberto Cunha Silva Filho, é funcionário. O caso levantou a suspeita de conflito de interesses.

Além do MPF e do TCU, o próprio Ministério da Saúde determinou a instauração de um comitê para apurar as irregularidades encontradas na Adaps, quando a diretoria foi afastada, fevereiro passado.

A atual diretoria é interina. Até o momento, não há nenhuma definição se o diretores afastados serão demitidos, mas eles podem responder por diversas irregularidades, sendo a improbidade administrativa a mais leve delas, caso as denúncias se comprovem.