Mostrado até poucos anos como uma vitrine do sucesso das reformas neoliberais na América Latina, o Chile agora está numa encruzilhada. Os 155 deputados eleitos começaram a debater em 5 de julho a nova Constituição, que substituirá a elaborada em 1981 pelo ditador Augusto Pinochet. E, em linhas gerais, a discussão legislativa parece evoluir para um aumento expressivo da presença do Estado na economia, contrariando a história recente do país. O perfil da Assembleia Constituinte indica que a esquerda e a centro-esquerda (Concertación), que compõem uma maioria de 51%, definirão o rumo das reformas. Esses grupos de oposição defendem a construção de um sistema universal de saúde, mais ensino universitário público e o retorno a um sistema de pensões do governo. A questão é se o Estado terá o dinheiro para pagar por tudo isto.

TENSÃO Protestos populares que estouraram em 2019 contra o governo foram um sintoma do aumento da pobreza e do mal-estar das novas gerações (Crédito:Pablo Sanhueza)

Exportador de cobre, vinhos, pescados e frutas, o Chile é um país praticamente sem indústrias e com pouco agronegócio. A carga tributária ronda os 17% do PIB, enquanto no Brasil está em 35%. A proposta dos constituintes da esquerda chilena é taxar as grandes fortunas e as exportações, o que permitiria ao Estado redistribuir o aumento da arrecadação com os serviços básicos, privatizados na era Pinochet. A pandemia aumentou a pobreza de 8% a 10% da população, enquanto a classe média baixa inchou para 40%, com gente que perdeu renda. O governo considera que uma pessoa sai da pobreza quando sua renda mensal individual supera US$ 240 (R$ 1.245,00, ou 78 mil pesos chilenos).

Oposição defende a construção de um sistema universal de saúde, mais ensino universitário público e o retorno a um sistema de pensões do governo

“O Chile é um país rico, mas extremamente desigual. Com a pandemia, muita gente que era da classe média caiu para a média baixa ou afundou na pobreza. Por isto, o desafio da nova Constituição será conciliar os interesses da população com a capacidade de o Estado dar os serviços que ela quer”, avalia Thiago Vidal, analista político da Prospectiva, consultoria brasileira especializada em América Latina. Vidal comenta que o país terá eleições gerais e para presidente em outubro deste ano e é difícil que o atual presidente, o conservador Sebastián Piñera, consiga fazer o sucessor. Piñera, com 60% de desaprovação, é ainda mais impopular que o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro. Vidal avalia que as eleições terão peso nas discussões da Constituinte. “As eleições mostrarão se a população estará satisfeita com os rumos da Constituinte”, diz. Ele acredita que a Constituinte será prorrogada e a Carta Magna só estará pronta em meados de 2022.

Protestos populares

Pinochet abriu completamente a economia nos anos 1980. Isto levou a um forte crescimento do PIB nos anos 1990, 2000 e 2010. Este modelo econômico, contudo, já dava sinais de desgaste antes da pandemia. Os protestos populares que estouraram em 2019 contra o governo foram um sintoma do mal-estar e do aumento da pobreza, mas também da mudança geracional no país. Pelo menos 30 pessoas foram mortas nos confrontos de rua. “O Chile foi um laboratório do neoliberalismo nos anos 80, mas este modelo se esgotou. A direita diz que a pauta da esquerda inviabilizará a economia do país a médio prazo, enquanto a esquerda contesta que uma parte da riqueza produzida precisa ser redistribuída”, diz Paulo Ramírez, professor de Relações Internacionais na ESPM.

Ramírez avalia que Piñera, de centro-direita, está no fim da sua carreira política. “O que acontece no Chile agora é uma mudança de geração. A população jovem não viveu na era Pinochet e tem novas demandas, como um sistema único de saúde”, diz Márcio Coimbra, coordenador de pós-graduação na Universidade Mackenzie em Brasília (DF). Coimbra diz que o Chile, ao abandonar o modelo institucional da era Pinochet, se move da direita para o centro, e não diretamente para a esquerda. “As mudanças não serão radicais. Tudo será negociado e é importante lembrar que no Chile, desde o fim da ditadura, centro-esquerda e centro-direita se alternaram no poder por mais de 30 anos”, lembra. O fato mais simbólico do avanço da esquerda foi a eleição da professora Elisa Loncón, de 58 anos, líder da comunidade indígena mapuche da Araucânía, para presidir a Assembleia Constituinte. Loncón obteve 96 dos 155 votos. Ela defende a autonomia para a Araucânia e a devolução das terras que os mapuches perderam, no final do século XIX, para os colonos brancos. Além dos indígenas, a Constituinte reflete a maior participação das mulheres. Dos 155 deputados, 76 são mulheres e 17 indígenas. Já se vê que a cartilha liberal chilena está em xeque. Resta saber se a maior pluralidade da Constituinte corresponderá a um esperado salto de qualidade na economia do país.