Simone Biles se deprimiu e decidiu ficar no banco de reservas. O medo da lesão e da queda foi determinante para sua decisão (Crédito:Mike Blake)

O Brasil mostra seu melhor desempenho em uma Olimpíada no exterior até agora. Perdeu o medo de ganhar medalhas e seus atletas passaram a saltar como nunca. Coragem, superação e força de vontade são as palavras geralmente associadas não só aos vencedores, mas também àqueles que conseguiram ir até o Japão participar dos Jogos. E, diante das nossas conquistas, é impossível não fazer uma comparação entre as ginastas Rebeca Andrade e Simone Biles. A brasileira e a norte-americana possuem histórias de vida similares, de triunfo sobre condições adversas e na hora da competição apresentaram comportamentos exemplares, embora diferentes. Simone, considerada a melhor do mundo, se deprimiu e decidiu ficar no banco de reservas. O medo da lesão e da queda, resultado de seus “twisties” — a perda da noção de onde se está no ar e a partir disso não saber como cair — foi decisivo. O risco é grande, os movimentos da modalidade ocorrem em grandes alturas e exigem exímia coordenação motora. Muito além de um braço quebrado, há o risco de paralisia e até de morte. Já Rebeca conseguiu superar as dificuldades com alegria e deixou o mundo boquiaberto com seus saltos mortais e com o ouro e a prata olímpicos.

A psicóloga do Esporte e professora da PUC-SP Juliana Camilo explica que essa situação também é comum em outros esportes. “Já atendi um nadador de alto rendimento que tinha medo de morrer afogado na piscina. Mesmo sabendo nadar desde criança, a possibilidade era real para ele”, explica. O esporte, como um todo, lida com a dualidade da coragem e do medo, algo que leva corpo e mente ao limite. “A questão psicológica é muito atual e do nosso tempo, no passado nem sempre foi assim. A psicologia voltada ao esporte tem muitas frentes além do medo: o alto rendimento, o racismo, a aceitação LGBTQIA+. Não é uma área que molda o atleta para ser assim ou assado”, diz. Já a coragem vem desde a infância.

A professora e árbitra de ginástica olímpica Mônica Barroso dos Anjos, profissional que primeiro avaliou Rebeca Andrade aos cinco anos, explica que a idade ideal para começar na modalidade é entre os cinco e oito anos. “A criança não tem medo, vê como uma brincadeira. Cai e logo quer fazer de novo”, diz. O início precoce também é responsável pelo desenvolvimento motor da criança. Segundo Mônica, que treina jovens promessas no agora famoso Ginásio de Ginástica Bonifácio Cardoso, em Guarulhos, é muito difícil, apesar de não totalmente impossível, ver um atleta de alto rendimento começar com 12 anos. “O corpo já tem uma composição, as principais habilidades motoras já estão lá, o trabalho tanto da criança como do professor é muito mais difícil”, diz. Uma das habilidades que um treinador precisa ter é saber como segurar a criança diante dos tombos iniciais. Quanto mais pesada for, maior o medo e menor a segurança nos braços do profissional.

O risco de lesões

Treinos, saltos, quedas em meio a competições de alto nível colocaram o corpo da ginasta brasileira de 22 anos e 1,54 metro de altura à prova. Isso porque Rebeca triunfou na Olimpíada de Tóquio após passar por três cirurgias no joelho. Na primeira, em 2015, a atleta rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito durante um treino para os Jogos Pan-Americanos de Toronto. Dois anos mais tarde, rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho direito. A terceira cirurgia aconteceu em junho de 2019, após a atleta torcer o joelho operado. Dessa vez o ligamento precisou ser reconstruído. A vontade de desistir foi enorme. E teria razões de sobra para isso. O ortopedista e médico do Esporte Roberto Ranzini diz que a ginástica “exige muito dos joelhos em termos de estabilidade e capacidade de absorver os impactos dos saltos. Especialmente no caso das mulheres existe uma maior tendência a lesões ligamentares, como a da Rebeca”, explica. Os riscos de complicações pós-cirúrgicas são enormes e cada cirurgia exige um tempo maior de recuperação. “É mais do que surpreendente ela ter conseguido se recuperar depois de duas reoperações’”, explica.

CORAGEM Thomas Van der Plaetsen saiu de cadeira de rodas da pista de salto após sofrer lesões na queda (Crédito:Ben Stansall / AFP)

Por isso, a coragem de Rebeca é tão comentada. Quando voltou a treinar, seu atual treinador, Francisco Porath, a carregou como uma criança recém-iniciada na modalidade. O olhar decidido da atleta antes de começar o solo ao ritmo combinado de Johann Sebastian Bach e MC João — na versão emocionante de “Baile de Favela” — mostrou ao mundo que a vontade de saltar foi maior que a vontade de desistir. As medalhas de prata e ouro, inéditas para o Brasil e para uma mulher negra brasileira, são gigantes. A influência que seu nome exerce agora é incontestável. O funcionário administrativo do ginásio onde Rebeca começou a treinar, Marcelo de Carvalho, se surpreendeu com a ligação da ISTOÉ: “Achei que era mais uma mãe buscando informações para matricular a filha”, disse rindo. “No dia que ela levou a prata, não consegui almoçar. Não saí do telefone”, disse.

A provação da atleta brasileira é comum para esportistas de ponta. O atleta Thomas Van der Plaetsen, da Bélgica, sofreu um grande tombo no salto a distância e permaneceu imóvel na areia. Saiu da prova em uma cadeira de rodas, sua perna direita parecia se curvar quando ele disparou para a tentativa do salto olímpico. O belga acabou sofrendo uma ruptura no tendão da coxa, uma contusão no joelho e uma ruptura nos ligamentos do pé direito, de acordo com um comunicado do Comitê Olímpico da Bélgica. A recuperação deve durar vários meses. Já a brasileira Ingrid Oliveira, que fez sua estreia olímpica no salto ornamental na altura de dez metros, também foi desafiada no pulo. Após ficar na 24ª posição, saiu da competição. Pular uma altura dessas, no entanto, é para poucos e o aprendizado de uma Olimpíada pode definir o futuro da carreira de Ingrid no esporte. Se no Brasil a torcida celebra esse feito, o país de Simone Biles não soube levar na esportiva. A imprensa americana pegou pesado com o desempenho corajoso, mas sem ouro, da atleta.

RECOMEÇO Ingrid Oliveira pulou de uma altura de dez metros no seu salto ornamental: aprendizado olímpico (Crédito:Jonne Roriz)

No Brasil, a performance de Rebeca inspira novos talentos. É o caso da jovem ginasta Manuela Kriegel, 11 anos, que treina quatro horas por dia, cinco dias por semana para um dia participar de grandes campeonatos. “Na pandemia, os treinos foram reduzidos, mas não vejo a hora de voltar com tudo”, disse. Quando começou, também em Guarulhos, aos 8 anos, já foi colocada entre as atletas que treinam para competir. “Eu tenho medo de cair, mas é muito legal ver as outras meninas conseguindo. Você quer fazer também”, diz. Ela afirma que seria um sonho participar de uma Olimpíada. “Quando eu tiver uns 16 anos ou mais, eu vou”, diz com confiança e alegria. “E vou para ganhar.”