Bruna Lombardi está em constante evolução, pessoal e profissional. Aos 68 anos, carrega um largo currículo: escritora, roteirista, atriz, produtora e apresentadora. A sua alma inconstante faz com que ela nunca aceite os padrões impostos por uma sociedade que tende a colocar o outro em lugar silenciado: “Você só pode ser feliz enquanto o seu coletivo for feliz. Não existe felicidade individual. Estamos todos conectados”, afirmou. Nesse emaranhado que é a existência humana, ela entende que figuras como Jair Bolsonaro são acidentes de percurso, e para libertar-se delas, é preciso deixar de lado as mazelas enraizadas na sociedade há tempos, como o machismo e o racismo. É preciso também construir um novo horizonte para que se erga uma nova sociedade. “Vivemos em um País desigual onde, para alguns, não existe a lei. Eles estão acima da lei. Eu vivo nessa indignação, imagino que todos nós vivamos”, disse Bruna à ISTOÉ.

Ao mesmo tempo que há um avanço da extrema-direita, tanto no Brasil, com Jair Bolsonaro, quanto nos Estados Unidos, com Donald Trump, a sociedade também dá um grito de basta?
A humanidade se movimenta. Uma das leis do universo é que nada está parado, tudo está se movimentando. E o universo é uma grande espiral, só que ascendente. Você volta ao mesmo ponto, só que em outro eixo, com a possibilidade de uma expansão. Voltamos para discutir coisas que acreditávamos que já estavam superadas. No entanto, estamos engatinhando de novo, debatendo coisas básicas, que já não deveriam mais fazer parte da rotina. Por outro lado, elas estão na pauta com uma reação diferente de 50 anos atrás. Estamos caminhando para uma grande conscientização, um grande despertar. E não tem mais volta. O problema é que o avanço da tecnologia está em um ritmo diferente do avanço humano e o grande perigo está em termos armas nucleares em mãos de seres tão primitivos.

E essa evolução é possível em um País que tem Jair Bolsonaro como presidente?
Eu acho que é inevitável, porque qualquer sujeito dura uma fração de segundo no poder, se olharmos para o fluir do tempo. Às vezes nos distraímos olhando o presente e isso não é ruim. Só que a gente se perde e esquecemos de pensar no que estamos plantando para o futuro. Depende de cada um de nós. E o futuro vai ser muito mais breve do que a gente pensa. A nossa sociedade precisa tomar conta das suas mazelas enraizadas na sociedade há tempos, como o machismo e o racismo. temos que ter um olhar maior no horizonte. Para onde estamos indo? Senão ficamos pisando no mesmo lugar, repetindo os mesmos erros, os mesmos escândalos, só mudando os nomes e os personagens. A dramaturgia continua pobre.

Por que você decidiu mudar para os Estados Unidos para criar o seu filho por lá, no ápice de sua carreira?
Para mim foi um movimento crucial. Como eu sou uma pessoa com uma certa exposição, eu sempre estive na mídia por muitos anos e sempre fui muito famosa, eu queria proteger um pouco meu filho disso. Não queria que ele fosse famoso antes de ter algum preparo e também queria que fosse uma escolha dele. Embora eu seja uma pessoa muito aberta e disposta a compartilhar o que eu já aprendi, ele precisava ter a sua própria caminhada. Eu queria preservar a sua intimidade e deixar ele se desenvolver como pessoa, longe dessa exposição toda. Na época, as pessoas acharam um absurdo. Falavam que eu estava indo embora no auge da minha carreira. E eu falava: vou vou aprender, estudar, ter novas experiências. O lugar onde eu estava era muito confortável, só que zona de conforto não faz ninguém crescer.

Qual foi a maior contribuição que a mudança para os Estados Unidos deu à sua vida?
Na época em que morei nos EUA, o presidente era o Bill Clinton. Então, tanto lá, quanto aqui, os momentos eram muito diferentes. Aqui, no Brasil, estávamos em um momento bem complicado. Já tínhamos passado por um período melhor, quando as ruas foram tomadas pelas manifestações das Diretas Já. Mas aí veio o combate à censura imposta pela ditadura. Passamos a ter a ilusão de que finalmente estávamos chegando a um processo de mudanças. Hoje eu acredito que as grandes mudanças e as transformações mundiais só acontecem com uma alternância de valores. Se você luta pela liberdade é porque você acredita que a liberdade é o melhor caminho da nossa evolução.

Como esse processo de liberdade contribuiu para você mudar seu projeto de vida?
A liberdade é a possibilidade de cada um ter uma vida digna e poder ser aquilo que se é. Não ter que se curvar aos padrões já estabelecidos. É o oposto de um regime totalitário, de qualquer espécie, seja de extrema direita ou extrema esquerda. É você viver sem ter que caber em um papel social. A liberdade também é se redescobrir, um caminho de autoconhecimento. É uma jornada árdua, não é simples e muito menos fácil, mas vai trazer elementos, valores e princípios éticos que você vai se basear nelas para a vida toda.

É como a escritora Maya Angelou nos ensinou: “nenhum de nós pode ser livre até que todos sejam livres”…
Exatamente. Assim como a felicidade é baseada na liberdade. A felicidade é a liberdade. Você só pode ser feliz enquanto o seu coletivo for feliz. Não existe felicidade individual.Estamos todos conectados. E a pandemia mostra isso de maneira escancarada. Para quem não tinha caído a ficha, é uma grande surpresa: entender que estamos todos conectados. Quem não entender isso, vai sofrer as consequências.

Como você vê a atuação do Ministério da Cultura?
Eu acho que o setor cultural está em uma situação emergencial, assim como outros setores. Nessa ideia de que somos todos conectados, não adianta voltar a atenção para um único setor se os outros não funcionarem à altura. Nessa pandemia estamos vendo a importância do setor cultural. Assim como a saúde, está tudo interligado. Quem está privilegiadamente em casa, e está podendo assistir filmes e séries, está dando muito valor para as produções culturais. Mesmo assim, esses setores não podem ser estudados separadamente. É preciso mudar toda uma escala de valores. Ou melhor: criar uma escala de valores. E respeitar a Constituição. Não adianta termos uma Constituição, e nos orgulharmos dela, se ela é desrespeitada, massacrada, até por alguns magistrados que não poderiam estar fazendo isso. Vivemos em um País desigual, onde, para alguns, não existe a lei. Eles estão acima da lei. Eu vivo nessa indignação e imagino que todos vivamos.

Qual lição devemos tirar disso tudo?
Nesse momento de pandemia estamos vendo uma série de voluntários trabalhando. Pessoas que arriscam sua vida e seu trabalho para ajudar os outros. Existe essa classe de indivíduos, que eu chamo de heróis anônimos. E entre eles estão muitos trabalhadores: garis, bombeiros, enfermeiros, uma série de profissionais prestando serviços cotidianamente para a sociedade. Há pessoas cujo trabalho é prestar serviços à comunidade, como a grande maioria dos servidores públicos. No entanto, paralelamente aos voluntários que gastam o seu tempo, e até o seu dinheiro para servir, existem pessoas privilegiadas que neste momento de dificuldades usam de seus cargos públicos para roubar a merenda das crianças, e até mesmo recursos do auxílio emergencial. Fazem isso com a certeza de que não serão punidos. O que você acha que precisa mudar? É uma elite criminosa. E o mais triste disso tudo é a impunidade, porque esse não é o exemplo que eu queria que o Brasil desse para os seus filhos. Agindo assim, é como se falássemos: sejam criminosos, porque criminosos se dão bem.

A elite é essencialmente perversa?
Essa é uma grande discussão. Acho que existe a raiz do mal, que é uma escolha. Eu gosto muito de uma lenda dos indígenas Cherokees em que o pai falava para o filho: existem dois lobos dentro de nós, o do mal e o do bem e eles estão constantemente travando uma luta. E o filho pergunta: quem ganha? E a resposta é: o lobo que você alimenta.

Como a poesia influencia sua carreira artística?
Eu acredito que todo leitor de poesia tem poesia dentro de si, para poder escutar essa música inaudível. Essa emoção transformada em palavras. E o processo de escrever nasce da observação. É preciso estar atento à vida. Não só para a vida circunstancial, mas para a vida essencial – o que você tem dentro de você. Quanto mais você se conhece, maior a abrangência dos canais com o mundo. E essa conexão do que acontece ao seu redor, a extensão daquilo que te cerca. Não importa o tamanho, importa o voo. É a dimensão.

A pandemia tem afetado oo processo criativo das pessoas?
Eu acho que se você não se descobre, não se encontra e não se dirige ao seu propósito, você vai ficar em um limbo, diante de um vazio, como está acontecendo com milhões pessoas nesse momento. Nós estamos vivendo não só uma pandemia, mas grandes crises existenciais, de busca de sentido, de saúde mental. Esse também é um dos temas da nossa expressividade. A saúde mental é uma pandemia invisível, de medos, ansiedade e depressão. Eu acredito que todas essas coisas se conectam com o propósito de vida.

Você tem aproveitado a pandemia do coronavírus para refletir sobre o futuro?
Eu tenho uma busca constante, desde criança mesmo, que é aquela pergunta que toda criança faz quando começa a se alfabetizar: o que estamos fazendo aqui? De onde viemos? Para onde vamos? Perguntas que depois de uma vida, de conhecer todos os filósofos, de ler livros, atravessar fronteiras, conversar com grandes pensadores, ainda assim elas não serão respondidas. Esse é o grande mistério e eu tenho essa busca. E uma das clarezas que eu tenho é: eu vou lidar eternamente com o mistério. Saber lidar com o mistério da vida é um grande prazer que me move.

Esse período da quarentena está sendo produtivo para a tua produção artística?
Para quem escreve e tem uma profissão ligada a produção de livros, séries, cinema, roteiro, a quarentena em si muda muito pouco a rotina de trabalho. Escritores já tem o hábito do isolamento, embora eu já tenha me adaptado a escrever em meio ao caos. Amigos meus alugam casas, escrevem de frente para o horizonte. Eu nunca fiz isso. Escrevo com pedreiro trabalhando ao meu lado. Estou acostumada a escrever com imprevistos ao redor. E eu sempre estou produzindo alguma coisa.