Ninguém pode dizer que as elites brasileiras, cada uma delas atuando em sua área, foram precipitadas e impacientes. Diante de um presidente da República que ameaça golpear as instituições democráticas e os direitos fundamentais dos cidadãos desde o primeiro dia de sua gestão, e lá se vão três anos e meio, elas, as elites, foram até fleumáticas demais. Ocorre, no entanto, que também a tolerância se cansa dos intolerantes. Pois é, presidente Jair Bolsonaro, o senhor e suas investidas golpistas exauriram a Nação. Aquilo que no início podia até ser julgado como minudências, explicita-se agora como um golpe em andamento. Veio o freio. Veio basta. Na semana passada, a elite nacional, organizada pela tradicionalíssima e apartidária Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em São Paulo, lançou a legítima, legal e constitucional Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa da democracia e do Estado de Direito. Nasceu com três mil signatários, em vinte e quatro horas passou para cem mil, some-se mais um dia e, na quinta-feira 28, já se contabilizavam mais de duzentas e vinte mil chancelas, reunindo advogados, juízes, desembargadores, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, acadêmicos, intelectuais, empresários, banqueiros, artistas e escritores.

Bolsonaro pode até continuar difamando o sistema eleitoral e os ministros do STF, mas o fato é que sua vexatória reunião com os embaixadores, na qual valeu-se somente de falácias para detonar as urnas eletrônicas, serviu como a gota d’água no poço sem fundo do autoritarismo. “Nunca vi tanta mobilização dos empresários”, aquilatou o CEO da Suzano, Walter Schalka. “Caiu a ficha do setor sobre a política”. Para Guilherme Leal, copresidente do Conselho de Administração da Natura, “os ataques às urnas são inaceitáveis, até porque afrontam o Poder Judiciário”.

O texto da carta dos juristas, que será lido a 11 de agosto em ato no denominado “território livre” da Faculdade do Largo de São Francisco, fundada em 1828, diz que o País passa por “um momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”. E conclui com uma convocação: “Clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições. No Brasil atual não há espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições”. Bolsonaro, em sua profunda ignorância, com certeza não sabe que, sempre que o andar de cima se move, o síndico do condomínio é trocado em legítimo sufrágio. Até por isso ele disse que “não preciso de “cartinha para defender a democracia”. De fato, não precisa: ele jamais defendeu, defende ou defenderá essa forma de governo. O ex-ministro e ex-decano do STF Celso de Mello, reserva moral do Brasil, fora convidado para ler a carta, mas declinou por motivos de saúde. Não deixou, no entanto, de se posicionar publicamente: “a resposta do povo brasileiro às graves e ameaçadoras manifestações do atual presidente da República, além de necessária é imprescindível”.

TERRITÓRIO LIVRE Goffredo da Silva Telles lê a Primeira Carta em 1977: agonia da ditadura (Crédito:Kenji Honda)

“Questionamento das urnas é inaceitável. Em um momento tão crítico como o atual, devemos, como cidadãos, nos manifestar” Guilherme Leal, Natura

De acordo com o advogado Oscar Vilhena, o documento empresarial foi articulado inicialmente pelo presidente da FIESP, Josué Gomes da Silva, e por um grupo denominado Comitê de Defesa da Democracia, integrado pelo próprio Vilhena e por nomes como a socióloga Neca Setubal, o economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, Celso de Mello, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o jurista Miguel Reale Jr. “O que estamos vendo é uma ação clara que setores da sociedade brasileira não aceitarão qualquer desvio da regra democrática”, avalia Vilhena. “Esse ato é um alerta às autoridades de que estamos atentos. É precaução contra fake news e contra golpes de mão”, diz Realle Júnior.

Não contente com o desconforto causado na reunião com os embaixadores, Bolsonaro, durante discurso aos partidários na convenção nacional do PL, mais uma vez atacou o STF ao convocar seus fanáticos apoiadores a saírem às ruas no Sete de Setembro. Como já dissemos acima, o capitão é gota d’água sobre gota d’água no poço do golpismo, e a carta cívica é reação contra isso. O presidente da Câmara, Arthur Lira, rompeu o seu silêncio e agora já não paga para ver – mesmo porque a tática do Centrão é mais a de receber que a de pagar. Lira, ah Lira, saiu em defesa ferrenha das urnas eletrônicas. Ele sabe que a “cartinha”, a que se refere Bolsonaro, de “cartinha” não tem nada. Trata-se, isso sim, da “primeira resposta coesa aos ataques de Bolsonaro à democracia”, como muito bem classificou o conceituado jornal britânico Financial Times.

Inspiração vem da história

Não é de hoje que juristas assumem a frente da sociedade civil na luta pela democracia e pelo Estado de Direito. Nos obscuros tempos de chumbo de 1977, nos quais os torturadores que Bolsonaro tanto admira eram blindados pelo regime militar de exceção, o catedrático em Ciência do Direito e Teoria Geral do Direito Goffredo da Silva Telles redigiu a Carta aos Brasileiros – texto tão histórico quanto Oração aos Moços, de Ruy Barbosa. Nele, Telles exigia a democracia e formação de uma Assembléia Constituinte.

Quando o texto foi escrito, o presidente era então o general Ernesto Geisel, que desde o início de seu mandato, em 1974, enfrentou uma série de dificuldades econômicas e políticas, além da ação dos porões repressivos – ressalte-se os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, ocorridos em 1975 e 1976. A Carta lida no Largo de São Francisco acelerou a débâcle do militarismo. Faz exatos quarenta e cinco anos. E, mais uma vez, é na Faculdade de Direito, marco cultural brasileiro, que se selará a débâcle de um capitão.