A causa uniu gerações, categorias e trouxe de volta às ruas na semana passada o saudável barulho do protesto. Em locais distintos do Brasil, pais, estudantes e professores de instituições federais de ensino protagonizaram as primeiras manifestações contrárias ao desmonte da educação brasileira colocado em curso pelo governo de Jair Bolsonaro. Na manhã da segunda-feira 6, enquanto o presidente participava da cerimônia em comemoração aos 130 anos do Colégio Militar do Rio de Janeiro, do lado de fora do local centenas de alunos, acompanhados pelos pais, gritavam por mais recursos à educação. Na mesma hora, em Salvador, estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) faziam uma passeata pela preservação do ensino. No dia seguinte, foi a vez de São Paulo sediar mais um ato. Entre universitários, articula-se uma greve para breve. Assim, de maneira ainda tímida, a sociedade começa a reagir contra o ataque sistemático da administração Bolsonaro tendo como alvo os principais centros de produção de conhecimento e palcos de livre pensar do País.

Os movimentos do governo neste sentido começaram há três semanas. Primeiro, Bolsonaro e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciaram que reduziriam as verbas destinadas à Filosofia e à Sociologia, duas áreas das Ciências Humanas. Uma semana depois, os dois divulgaram que cortariam em 30% os recursos destinados às Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal Fluminense (UFF) sob o argumento de que elas estariam fazendo “balbúrdia” e que apresentavam performance acadêmica aquém da desejada. No dia seguinte, a redução foi estendida a todas as federais.

BARREIRA Um dos alvos da redução de recursos, a UnB reage: um abraço de professores e estudantes simboliza a defesa da instituição e de suas pesquisas (Crédito:Secom UnB)

Doutrina da alienação

Bolsonaro deseja implantar no País a doutrina da alienação. Durante a campanha eleitoral, defendeu o Escola Sem Partido, programa de alas conservadoras da sociedade cuja meta é tirar dos colégios o que considera “doutrinação política e ideológica em sala de aula.” Na prática, querem impedir o exercício da crítica em sala de aula. A perseguição às universidades é mais um passo nesta direção. As instituições foram criadas para abrigar a geração de conhecimento, feita a partir do livre trânsito de ideias e sem segmentação de áreas. Hoje, mais do que em qualquer outro tempo, sabe-se que a produção científica deve ser interdisciplinar. Os diferentes campos da ciência – e incluem-se aí os de Humanas – combinam-se para criar e compreender e explicar o mundo em toda a sua complexidade. O pensamento é livre e múltiplo.

Na terça-feira 7, durante depoimento à Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, no entanto, o ministro Weintraub demonstrou que está longe de entender algo que deveria ser básico para alguém em sua posição. Entre outras temeridades e depois de confundir o nome do escritor Franz Kafka, autor do livro O processo, com kafta, conhecido prato de origem árabe, o ministro disse que a expansão do ensino superior registrada nos últimos anos era “uma tragédia.” De fato, nem todo curso criado recentemente prima pela qualidade. O problema é que a onda de novos cursos ocorre no setor privado, com a abertura de instituições que servem mais de caça-níquel do que centro de aprendizado. Esta é de fato uma questão importante a qual o governo deveria estar atento. Mas o foco de Bolsonaro é exatamente o contrário: as instituições nacionais públicas de grande tradição histórica e política.

Na contramão do Brasil, na semana passada a Alemanha anunciou o aumento de verbas para suas universidades na próxima década

ACADÊMICOS Estudantes cercam o campus da Universidade Federal Fluminense em Niterói: bolsas e pesquisas em perigo (Crédito:Guito Moreto)

Essas universidades são as principais geradoras de conhecimento e de formação de quadros do País. Cerca de 95% da produção científica brasileira é feita por elas, quase sempre a custo de muito esforço pessoal dos cientistas para que os estudos avancem. Mesmo trabalhando em condições piores do que os colegas das universidades internacionais, os brasileiros alcançaram conquistas importantes em todas as áreas. Para ficar em uma das mais recentes: em 2016, a pesquisadora Celina Turchi apareceu entre os dez cientistas mais importantes daquele ano na lista da revista Nature, uma das mais prestigiadas do mundo. Ela comandou uma equipe internacional responsável pela descoberta da associação entre o vírus da zika e a microcefalia.

Sem água nem luz

No laboratório do professor Amilcar Tanuri, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, são desenvolvidos alguns dos estudos essenciais para o entendimento de doenças como a própria zika, a febre amarela e outras graves ameaças à saúde pública. Os cortes anunciados por Bolsonaro atingirão em cheio seu trabalho, assim como o de seus colegas de universidade. Toda a infra-estrutura necessária para que ele trabalhe, como boas condições do prédio, água, luz, segurança e coleta de lixo depende do dinheiro que o presidente e seu ministro prometeram tirar. Se hoje sua pesquisa já está prejudicada por falta de recursos para resolver problemas como goteiras e equipamentos quebrados, dentro de um ou dois meses pode ficar inviável. “Como vamos conseguir trabalhar sem água, energia elétrica?” A pergunta é simples. E a resposta, a serem mantidos os cortes, também é: não vão.

Entre os trabalhos conduzidos pelo time de Tanuri estão o desenvolvimento de novas drogas contra vírus e o entendimento de como eles circulam pelo país, informação chave para a prevenção de epidemias. A pesquisa é um exemplo dos benefícios que as universidades trazem ao país. Sem o conhecimento a ser proporcionado pelo laboratório de Tanuri ­— e de outros que seguem linha de estudo semelhante — e sem a compreensão do comportamento das pessoas diante da necessidade de se prevenir, respostas que surgem de investigações na área das Ciências Humanas, o Brasil continuará à mercê de doenças que há muito deveriam ter sido controladas.

DESCASO No laboratório de Tanuri, na UFRJ, vários aparelhos não funcionam. Seus estudos sobre vírus estão prejudicados (Crédito:Divulgação)

O governo Bolsonaro, no entanto, joga com a ignorância da população a respeito da riqueza produzida nas universidades. Aposta na estratégia de difundir mitos, como o de que elas são abrigos de jovens ricos interessados mais em bagunça do que em estudo. O objetivo é minar instituições de onde justamente pode vir uma oposição inteligente e combativa. Uma das formas de impedir que a tática prevaleça é investir na difusão da importância das universidades para o País. e mostrar aos brasileiros o quanto custa e custará ao Brasil sucateá-las. “Precisamos fazer isso com urgência. Levamos décadas para construir uma rede de ensino e pesquisa acadêmicas e sua desconstrução está sendo muito rápida” , afirma o cientista Stevens Rehen, professor da UFRJ e um dos mais respeitados neurocientistas do País. Em solidariedade ao Brasil, dezenas de acadêmicos de universidades internacionais do porte de Yale e Harvard, nos EUA, e Oxford, na Inglaterra, assinaram um manifesto em repúdio às ações do governo. Contou muito para a reação estrangeira os ataques às Ciências Humanas e à figura do educador Paulo Freire (1921-1997). Um dos mais célebres pensadores da Educação do mundo, Freire é patrono da educação brasileira. Bolsonaro pretende dar o título a outro.

Nenhum país civilizado prescinde de educação e ciência. E isso só é garantido quando o Estado — e não somente governos – faz a opção clara por este caminho. Nesta semana, a Alemanha anunciou que irá aumentar as verbas para pesquisa em 3% ao ano pela próxima década, percentual que já vinha sendo aplicado anualmente, desde 2006, para reajustar os recursos destinados aos trabalhos científicos naquele país. Não é à toa, portanto, que a nação europeia seja uma das maiores potências mundiais da atualidade. Qual parte a administração Bolsonaro ainda não entendeu?