As imagens acima não ilustram apenas um presidente aproveitando as férias no final do ano. Representam a visão que Jair Bolsonaro tem da Presidência, como se fosse uma festa permanente, com total desprezo pelo peso do cargo e descompromisso com a população. O mandatário curtiu a véspera do Natal no Forte dos Andradas, em Guarujá (SP), entre os dias 17 e 23, e seguiu para São Francisco do Sul (SC) no dia 27 para passar o Réveillon com a primeira-dama, Michelle, e a filha mais nova. A farra só foi interrompida na madrugada do dia 3, quando foi levado às pressas para São Paulo.

OSTENTAÇÃO O presidente deu cavalos-de-pau com um carro de exibição no parque Beto Carrero World, em Santa Catarina (Crédito:Divulgação)

Não há nenhum problema em um chefe do Executivo fazer uma pausa na agenda carregada. Não é o caso de Bolsonaro. O problema é que ele transformou o exercício do cargo em lazer. Sua agenda é escassa em compromissos, que muitas vezes se resumem ao longo do dia em receber religiosos, ministros próximos e aliados como o advogado Frederick Wassef, como ocorreu no dia 30 de novembro (Wassef é aquele que abrigou Fabricio Queiroz, acusado pelo MP-RJ de ser o operador das rachadinhas de Flávio Bolsonaro). Trata-se de um dos presidentes mais inativos da história do País. É conhecido seu hábito de acompanhar as redes sociais de madrugada, o que dificulta a atividade no dia seguinte. Enquanto isso, rareiam os despachos no Planalto. A máquina administrativa, que está praticamente paralisada em setores estratégicos (como Educação, Ciência e Tecnologia, Receita Federal etc.), raramente recebe sua atenção. Na Saúde, suas intervenções frequentemente são para interromper iniciativas vitais, como a imunização de crianças contra a Covid. Já visitas a quartéis e formaturas de oficiais estão no topo das prioridades.

SEM MÁSCARA Imagem divulgada pelo próprio mandatário mostra aglomeração nas praias de Itaguaçu e Ubatuba, em São Francisco do Sul (SC) (Crédito:Divulgação)

O bem-bom na virada de ano refletiu essa linha de conduta. Consagrou o que foi a gestão. Enquanto se divertia em cenários paradisíacos, o estado da Bahia foi acometido por chuvas e enchentes que deixaram quase 30 mortos, centenas de feridos e 35 mil desabrigados. De novo, como ocorreu com os mais de 600 mil mortos na pandemia, Bolsonaro foi fisicamente incapaz de demonstrar empatia com as vítimas. Ele argumenta que sobrevoou as áreas atingidas antes de sair para as festividades e que delegou ao ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, a responsabilidade de supervisionar a tragédia. Mas não dirigiu nenhuma mensagem a quem perdia tudo, quando não a própria vida. E isso não o impediu de fazer um ataque ideológico ao governo da Argentina, ao recusar a ajuda do país vizinho aos atingidos. E, no dia 5, o próprio Marinho saiu de férias.

Não é que Bolsonaro não respeita a liturgia do cargo. Ele não mostra apetência para exercê-lo. Além do fastio com as suas obrigações, as imagens da fuzarca reafirmam que Bolsonaro ignora o decoro que se espera do chefe da Nação. Do chefe de Estado se anseia recato, decência, dignidade, honradez e pudor. É tudo o que não se viu na bambochata de verão. No parque de diversões catarinense Beto Carrero World, vestido de piloto de corrida, o presidente deu vários cavalos-de-pau em um carro de exibição, aplaudido por uma plateia de apoiadores que gritava “mito!”. Pilotou jet ski com a mulher e a filha adolescente em alta velocidade. Nas praias, estimulou aglomerações. Tudo sem máscara, assim como fez a primeira-dama nas lojas, contrariando a legislação do estado. Fez uma fezinha em uma lotérica e cortou o cabelo em um barbeiro local, surpreendendo populares. Antes do Natal, no Guarujá (SP), Bolsonaro dançou em um barco o funk machista “Proibidão Bolsonaro”, do falecido MC Reaça, que compara mulheres a cadelas. Todos os passeios contaram com a assistência de servidores e o aparato de segurança presidencial.

Populismo aberrante

Com esse comportamento bananeiro, Bolsonaro novamente passa uma péssima mensagem ao mundo. Líderes internacionais sempre usam sua imagem pública para fins políticos. Entre os exemplos negativos, o russo Vladimir Putin desfila sem camisa em cenas de caça para projetar virilidade. Fernando Collor gostava de pilotar jatos e carros potentes para exibir poder, antes de cair em desgraça e sofrer o impeachment. Já a família real britânica é célere em prestar solidariedade em casos de tragédia, o que é encarado como uma obrigação moral. Premiês alemães nunca exibem ostentação ou luxo, um sinal de respeito com a população. Bolsonaro, por outro lado, optou pelas motociatas copiadas do fascismo e pelo apelo popular de baixa extração.

Esse populismo aberrante e vulgar serve para motivar a parcela da população, cada vez menor, que admira incondicionalmente os excessos do presidente. Mas causa indignação na maioria que espera a solução dos problemas urgentes que acometem a sociedade, como o desemprego, a disparada da inflação e a crise na Saúde. Na administração pública, esse comportamento só ajuda a desmobilizar os servidores. Na comunidade internacional, ele é recebido com aversão e desprezo. Não é à toa que Bolsonaro não tem interlocutores no cenário internacional, apesar de estar à frente de uma das maiores economias do mundo. Quando tentou transformar a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, no seu cercadinho, em setembro passado, apenas estampou em nível mundial sua desconexão com a realidade, o que já havia feito nos raros encontros de cúpula em que foi convidado. Não contribuiu um milímetro para trazer o País ao centro dos debates mundiais.

A comunicação oficial, que deveria nortear a administração e esclarecer a população, virou um instrumento de ataques aos adversários. O presidente usa seus canais próprios em redes sociais para desinformar ou propagar notícias falsas (está sendo investigado pelo STF por isso), enquanto menospreza o contraditório e se recusa a passar pelo crivo da opinião pública. Acha que pode governar pelas redes sociais. A imprensa, além de ignorada nas manifestações oficiais, é frequentemente alvo de suas investidas. O presidente acha que pode legitimar seu governo por meio da desinformação digital e da espetacularização do cercadinho, onde só recebe fãs e destila ódio generalizado. As imagens estivais coroaram a forma Bolsonaro de enxergar o País.

Com a péssima repercussão da folia, os aliados saíram em sua defesa. A deputada bolsonarista Bia Kicis disse que o presidente “precisa descansar para aguentar o rojão”. De volta a Brasília, o próprio mandatário tentou se justificar. “Fizemos coisas fantásticas ao longo desses dias que dificilmente outro governo estaria fazendo. O presidente não tem férias. É maldoso quem fala que estou de férias. Eu dou minhas fugidas de jet ski. Dou lá uns cavalos de pau no Beto Carreiro”, afirmou.

Esse foi o último Réveillon antes das eleições presidenciais, em que Bolsonaro se arrisca fortemente a perder o posto. Pode ser a primeira vez que isso acontece desde a redemocratização. Sua conduta “Living La Vida Loca”, emulando a música pop, pode ser uma estratégia para animar a militância desafiando a opinião pública (como sempre fez), simples negação psicológica de um cenário catastrófico que se desenha, ou pura alienação de um turista acidental da história. Como se sabe, a fanfarronice teve um final amargo. Mas esse resultado não alterou em nada a rotina do chefe do Executivo. No mesmo dia em que voltou a Brasília, Bolsonaro compareceu a um jogo de futebol em Buriti Alegre (GO), promovido pelos cantores sertanejos Gusttavo Lima e Marrone, da dupla Bruno & Marrone. Chegou de helicóptero pouco antes das 20h e deixou o estádio às 23h15. A festa, como diz o dito popular, precisa continuar.