SUPERFICIAL General Villas Bôas: vazio intelectual e ideias rasas em livro-depoimento (Crédito:Divulgação)

Na semana passada o Brasil viveu, desde a redemocratização em 1985, quando emergiu da ditadura militar, a sua mais grave crise institucional a ameaçar o Estado de Direito. Culpa de um general conspirador e golpista e de um deputado com atitudes delinquenciais, que grotescamente atentou contra a Lei de Segurança Nacional. Dois anos e dez meses após um tuíte provocativo do general Eduardo Villas Bôas, à época em que comandava o Exército, imiscuindo-se indevidamente em um julgamento do Supremo Tribunal Federal, tornou-se explícito, na terça-feira 16, o confronto entre a extrema-direita bolsonarista e a mais alta Corte do País, empenhada na defesa da democracia.

O fantasma do golpe saiu das sombras trazendo nas mãos o recém-lançado livro “General Villas Bôas: Conversa com o Comandante”, que reúne depoimentos seus ao professor da FGV Celso Castro. O fantasma contou também com o criminoso comportamento do parlamentar Daniel Silveira, que gravou e divulgou um ofensivo vídeo contra o STF — ele viu-se imediatamente preso pela Polícia Federal, em decorrência de acertada e enérgica determinação do ministro Alexandre de Moraes: a lei permite a prisão, quando é caso de flagrante, feito o de Silveira, e posteriormente a Câmara dos Deputados decide se mantém ou não a decisão do Judiciário. O despudorado deputado, que se orgulha de ter sido preso mais de noventa vezes, deu seu apoio a Villas Bôas, e é sempre assim: um militar de alta patente se mete na política, para onde não é chamado, um civil o acompanha na tenebrosa aventura, e a democracia no País sai lesada. Uma coisa puxa outra, a história se repete. Então, vejamos.

É sempre assim: um militar de alta patente se mete na política, para onde não é chamado, um civil o acompanha na tenebrosa aventura — e o regime democrático no País sai lesado

Pano para manga

Quando se chega ao final do livro do general tem-se o sentimento de vazio intelectual – suas ideias são rasas. Mais: tem-se a certeza de que o militar concebe, equivocadamente, as Forças Armadas, que são uma instituição, como sendo um dos poderes republicanos. O livro transpira arrogância, ego e prazer pela conspiração, porque Villas Bôas, embora tente convencer o leitor de que é democrata, deixa transparecer que admite a tutela militar sobre o poder civil e considera a defesa da democracia uma concessão e um favor prestados pela caserna, não um dever constitucional. Dessarte, o livro ganhou repercussão naquilo que mais fere o regime democrático — está repercutindo na tradição do golpismo. A situação já estava tensa antes de Silveira entrar na parada. Quando ele entrou, tudo se agravou mais ainda.

O ponto central do livro, espécie de pecado original da crise à qual Silveira aderiu, é o detalhamento da elaboração e do intuito do tuíte já referido, o qual Villas Bôas postou no dia 3 de abril de 2018, às vésperas do STF julgar um habeas corpus de Lula pedindo para recorrer em liberdade de sua condenação em duplo grau de jurisdição. Eis um trecho do texto golpista: “Nessa situação em que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País (…)”. Por que Villas Bôas queria que Lula perdesse o habeas corpus? Ele temia, como pode-se temer miragens, uma sublevação entre seus comandados, se o tribunal concedesse a ordem. Tudo mentira, ele queria, mesmo, facilitar a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais e tinha receio da candidatura de Lula. O livro aponta que, “mais que uma ameaça”, o tuíte “foi um alerta” ao STF, como se isso desse à mensagem (eis a arrogância, eis o pensamento da concessão) o tom da não excepcionalidade. ”É inaceitável e intolerável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”, reagiu, na segunda-feira 15, o ministro do STF Edson Fachin. Já Villas Bôas, em sua empáfia, preferiu ironizar Fachin na redes sociais, “debochar” dele, conforme qualificou o também integrante da Corte Gilmar Mendes. O general postou por maldade: “Três anos depois”. Estava dada a senha para quem quisesse ofender o STF. Silveira topou. O general conseguiu, então, aquilo que já desejava em abril de 2018: alguma afronta ao Supremo Tribunal Federal.

Claro que Villas Bôas sabia que estava dando pano para a manga bolsonarista, queria incêndio e o conseguiu, quando o deseducado e igualmente golpista deputado Silveira entrou em ação. O parlamentar gravou e divulgou um vídeo clamando pelo fechamento do STF e a volta do AI-5, ofendendo com palavrões cinco magistrados, pedindo aos bolsonaristas que os agridam nas ruas, e disse que Gilmar “vende sentenças”. Um trecho saído da boca de Silveira dá conta de que o lugar ideal para ele é um presídio de segurança máxima: “Vá lá [Fachin], prende Villas Bôas, seja homem uma vez na vida (…) Fala pro Alexandre de Moraes, o homenzão (…), manda ele prender um general”. O PSL, partido de Silveira, divide-se quanto a uma expulsão de vez da legenda, uma vez que os ataques feitos ao STF não podem ser confundidos com o exercício da liberdade de expressão”. O plenário da Corte, por onze votos a zero, confirmou a prisão. O Ministério Público Federal o denunciou por incitamento à violência e ameaça ao livre exercício dos poderes Legislativo e Judiciário. O bolsonarista Arthur Lira, líder da Câmara de deputados, até a tarde de quinta-feira tentava articular saída que permitisse tirar o deputado Silveira da cadeia. A comissão de ética vai analisar o caso. Para que se tenha noção da tamanha falta de caráter de Silveira, ele buscava falsos atestados médicos para faltar no trabalho de cobrador de ônibus. Tempos depois tornou-se policial militar — profissão na qual exerceu por cerca de seis anos, período de poucas glórias: passou vinte e seis dias na prisão, cinquenta e quatro na detenção, quatorze repreensões e tomou duas advertências.

VOZ LÚCIDA Alexandre de Moraes manda prender Silveira: o Estado de Direito e o Brasil agradecem (Crédito:Divulgação)
DEFESA REPUBLICANA Ministro Fachin: “É intolerável e inaceitável pressão injurídica sobre o Judiciário” (Crédito:Divulgação)

Ridícula tese

ISTOÉ conversou com dois juristas que pediram a preservação de seus nomes, uma vez que avaliaram a situação a partir da mídia. O primeiro: “Pelo noticiário, a simples postagem do tuíte é um golpe. E golpe idêntico é a conduta indecorosa do deputado”; o segundo: “Temos na memória a dor do regime militar, e novamente nos vemos diante de pensamentos estranhos à normalidade democrática”. Villas Bôas (ah, a arrogância; ah, a vocação de gerente da República) explica, com total naturalidade, que o fatídico tuíte era para ser ainda mais ácido, mas acabou relativizado pelo então ministro da Defesa general Joaquim Silva e Luna (hoje diretor-geral de Itaipu, que, à época, teria feito algo mais útil se tivesse vetado a mensagem, em vez de abrandá-la). Segundo o livro, o “rascunho” do tuíte foi passado aos integrantes do Alto Comando, que moravam em Brasília, e aos chefes militares de áreas. Ou seja: o Alto Comando do Exército tramou um golpe.

“Não aprendem e não esquecem”, disse Talleyrand sobre os Bourbon. No Brasil, após 21 anos sob a ditadura, também há generais e deputados que não aprendem e não esquecem a sanha pelo poder

Sabe-se lá quantas mãos trabalharam na lambança, mas é alta a probabilidade de que militares, que agora são ministros de Jair Bolsonaro, tenham tomado conhecimento ou auxiliado na escrita: Fernando Azevedo (era chefe do Estado Maior), Luiz Eduardo Ramos (à época no Comando Militar do Leste) e Walter Braga Netto (comandava o Sudeste). Que o lugar de Lula é na cadeia pelos crimes de corrupção, sobre isso não resta dúvida, mas não cabe às Forças Armadas se intrometerem em julgamentos. Lula perdeu o habeas corpus e foi preso. No restante, o livro que detonou a crise com a ajuda de Silveira traz a arenga de que países crescem os olhos sobre a Amazônia, critica a Comissão da Verdade e ridiculamente inova na tese de que Bolsonaro foi eleito porque o País está cansado do politicamente correto — bobagem, o que ocorre é justamente o contrário, o Brasil ama o politicamente correto: algo que Villas Bôas deveria ter imitado no tocante a tuítes. Villas Bôas não conta o que Bolsonaro, já eleito, quis dizer com “aquilo que conversamos morrerá comigo”. E menciona o político francês Charles de Talleyrand, que, analisando a dinastia dos Bourbon na Restauração da França, após a queda de Napoleão, declarou: “Não aprendem e também não esquecem”. Pois é, depois de uma ditadura que sangrou o Brasil por vinte e um anos, parece que alguns generais e deputados também não aprendem — e não esquecem a sanha pelo poder totalitário.